dialética negativa

Saturday, June 21, 2008

Miséria orgânica e beleza espiritual

Divina
(Cruz e Souza, Faróis)

Eu não busco saber o inevitável
Das espirais da tua vil matéria.
Não quero cogitar da paz funérea
Que envolve todo o ser inconsolável.

Bem sei que no teu circulo maleável
De vida transitória e mágoa séria
Há manchas dessa orgânica miséria
Do mundo contingente , imponderável .

Mas o que eu amo no teu ser obscuro
É o evangélico mistério puro
Do sacrifício que te torna heroína.

São certos raios da tu’alma ansiosa
E certa luz misericordiosa,
E certa auréola que te fez divina!

Embora seja Augusto dos Anjos quem tenha levado a fama de pessimista maldito, Crus e Souza, o simbolista das atmosferas sublimes, inefáveis e divinas, tem também seus momentos mórbidos: “Não quero cogitar da paz funérea /Que envolve todo o ser inconsolável.”, mesmo que depois alcance dialeticamente “o evangélico mistério puro” da amada. Schopenhauer no seu Os dois problemas fundamentais da ética, vê na compaixão (Mitleid) o grande mistério da ética (§. 22. Metaphysische Grundlage, III743), antes de ser uma virtude (Tugend). Cruz e Souza nega o corpo e seu ser mortal, as “manchas dessa orgânica miséria/ Do mundo contingente, imponderável.”, ou seja, aquilo que Schopenhauer vê como a face horrorosa da vontade, para afirmar “certa luz misericordiosa” da amada. Logo, a beleza sublime que a faz divina (“Divina” é o título do poema) contém uma compaixão involuntária pela miséria dos outros existente em sua luminosidade. Se ela possui a misericórdia enquanto virtude, ela se incorpora na pureza sublime de sua beleza. Por isso o mistério da compaixão pode se manifestar não como virtude, mas como qualidade involuntária de outra virtude, que não tem nada a ver com a ética, de ser bela. Se a morte e a miséria orgânica do corpo é inconsolável, a sublimidade da luz da beleza (do corpo e da alma, aqui Souza não explicita e nem precisa: a pré-compreensão nos fornece os dados da interpretação) traz a misericórdia misteriosa, milagrosa. Para vencer a miséria da mortalidade, só mesma a divindade da aparência sensível, quer dizer, a espiritualidade, a “auréola” divina da beleza corporal. Mas ao contrário de Schopenhauser, a paz não está na negação da vontade de viver e na morte, pois não é a “paz funérea” que o interessa, antes o êxtase da luz feminina e vital, é daí, do mortal, que ele retira o espiritual. Augusto dos Anjos resolveu manter o primeiro momento de Cruz e Souza e desprezar o segundo; deliciou-se não com o consolo da aparência espiritual, mas com a própria insistência no inconsolável. O paradoxo de Augusto dos Anjos, próprio da representação do grotesco, é tirar gozo estético da “miséria orgânica”, abrindo as portas para um Beckett. Sendo assim, se Augusto dos Anjos é mais schopenhaueriano, o espírito de Cruz e Souza talvez seja mais c0omplexo, pois é filosoficamente inclassificável e singular.

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