dialética negativa

Wednesday, February 29, 2012

Confissão de uma alma que passou a ambicionar a modéstia

Sempre me impressiono ao constatar que, depois de tantos anos não sendo quase ninguém, passei a ser alguém. Eu era sempre aquele que prometia, que um dia seria, talvez, provavelmente, mas quando que esse dia iria aparecer? Parecia, para mim, que nunca. Podia até fantasiar, mas não havia desejo, de fato. Até que, por causa de uns trâmites institucionais e burocráticos, de repente, eu passei a ser alguém.
Sei que não cheguei a ser grande coisa. Para muitos, continuo não sendo quase nada. Para outros, eu, que mal incomodava, passei a incomodar mais. Mas não cheguei a incomodar ninguém demais. Talvez um ou outro amigo que gosta de mim, mas ao mesmo tempo nunca suportou a hipótese de eu ser alguém para alguém, ou um ou outro personagem real que me considera inimigo e não engole eu ser um pouquinho algo, mínimo que seja, sim, talvez eu incomode especialmente esse tipo de gente.
É: para alguns, passei a ser alguém de fato. Alguns do meu país, outros de outros países, outros de outros planetas, outros de outros universos, outros de mundos impossíveis. Especialmente alguns da África, alguns de Manaus, alguns de Cambridge. Quem diria...
Não consigo deixar de me estranhar em ser alguém. Algo em mim preferiria ser ninguém.
Bem, é verdade que me causa um prazer especial saber que incomodo pessoas que se dedicam a se incomodar com os outros. É um reconforto para o espírito saber que contribuo para o masoquismo desses personagens tão reais.
Mas algo em mim preferiria mesmo não ser nada. Não ser nem um incômodo para incomodados, nem ser alguém para seres que - pelo que parece - gostam de mim, nem para seres mais novos que dizem aprender tanto comigo. Não: a raiva, o incômodo, a repulsa, o agrado, o amor, a decepção, tudo parece ser tão evidente, brutal, grosseiro - real demais para ser verdade. Ser alguém é participar demais da vida dos outros e, inevitavelmente, sentir os outros participando demais da sua vida.
2
As pessoas deveriam se proteger mais umas das outras. Por que ninguém se apercebe que toda proximidade é sempre perigosa? A carência universal faz os corpos se aproximarem, trocarem olhares, palavras e etc. Se não houvesse proximidade, possivelmente não haveria carência, mas poucos se apercebem disso.
3
As relações humanas nunca são sutis. Ninguém é sutil com o outro. Nem o poeta, nem o psicanalista. Alguém sempre violenta alguém. E para sobreviver, depois de anos sendo ninguém, preparando-me para ser alguém, cá estou eu, sendo alguém pequeno, mas alguém.
Então não posso evitar de declarar que: só sou alguém porque preciso sobreviver. Se eu pudesse escolher, não seria. Meu ofício de ser alguém contém milhões de complexidades e sutilezas que me agradam bastante na maioria das vezes, para passar o tempo, e outras vezes me cansam. Mas sua base é de uma obviedade brutal: preciso sobreviver, e se não fosse isso, eu não conseguiria de nenhuma outra forma. Ou eu não seria ninguém, ou, para ser alguém, preciso mobilizar todo um plano, um mapa do futuro, um currículo, uma rede de associações, etc.
Achava, outrora, que ser alguém me daria a substância que me faltava. Mas a existência parece ser um holofote nos olhos. Agora vejo que uma invisibilidade sustentável e suportável seria o ideal.

Não é possível. Mesmo se fosse, agora já é tarde demais.
4
O único lugar para sutilezas é na fantasia, na ficção, na poesia, no texto. Aqui. Para que essa sutileza frágil tenha alguma força na realidade grosseira, é preciso sobreviver e ser alguém. A beleza dos escritores não reconhecidos em vida está no fato de que se pouparam da existência bárbara de ser alguém. Produzir sutilezas e ser alguém é demasiadamente contraditório. Mas é preciso renunciar ao desejo de ser invisível e expor-se à barbaridade da proximidade para que a sutileza console os futuros ninguéns que dela estarão sedentos.

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