dialética negativa

Wednesday, December 30, 2009

o céu é infinitamente superior à terra

A Vida de Santo Antônio, de Atanásio de Alexandria, contém uma passagem em que Santo Antônio, para fortalecer a fé de seus discípulos, compara as maravilhas da vida eterna no céu com as da vida na terra.
For the whole life of man is very short, measured by the ages to come, wherefore all our time is nothing compared with eternal life. And in the world everything is sold at its price, and a man exchanges one equivalent for another; but the promise of eternal life is bought for a trifle.
[...]
Nor let us think, as we look at the world, that we have renounced anything of much consequence, for the whole earth is very small compared with all the heaven. Wherefore if it even chanced that we were lords of all the earth and gave it all up, it would be nought worthy of comparison with the kingdom of heaven. For as if a man should despise a copper drachma to gain a hundred drachmas of gold; so if a man were lord of all the earth and were to renounce it, that which he gives up is little, and he receives a hundredfold.

Partindo da tradição do salmo 16:5 da herança divina e retomada em Romanos 8:18, " Pois tenho para mim que as aflições deste tempo presente não se podem comparar com a glória que em nós há de ser revelada", esse tipo de comparação do céu sublime com a miséria do melhor da terra foi desdobrada em grande parte dos melhores momentos da tradição mística (Eckhart, Porete, etc.). O tempo de vida na terra não é nada comparado à vida eterna, as maiores riquezas da terra são migalhas comparadas as do céu, os maiores prazeres da terra são sofrimento comparado ao êxtase e serenidade eternos.

Em Rom 5:3-5, "gloriemo-nos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a perseverança,
Rom 5:4 e a perseverança a experiência, e a experiência a esperança;
Rom 5:5 e a esperança não desaponta, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado"

Expõe o argumento final: não se trata de renunciar ao melhor do mundo para esperar algo incerto depois da morte, porém, a força da perseverança, vinda do treino ascético nas tribulações, constrói a experiência (para saber enfrentar cada vez melhor as tribulações) e fortalece a esperança, que é alimentada pela capacidade de resistência e alimenta a capacidade de superação, de modo que o "amor de Deus", vindo do Espírito Santo, doa pequenas amostras das maravilhas do céu em forma de experiência mística.

A beatitude da vida eterna não deve ser, portanto, uma negociata com Deus, servindo de motivo para denegrir a vida e não esperar nada dela. Parte do masoquismo cristão é fruto desse tipo de ignorância. A outra parte, o ressentimento, o rebaixamento da vida, a hipostasia do pecado, em vez de minimizar o efeito do mal, avantajou-o ao absolutizá-lo. O pecado está em todo lugar, mas a chance de superá-lo é tão onipresente quanto. Então, para que escolher o caminho do niilismo?
Só nos interessa pensar na beatitude inimaginável do paraíso se ela for o ponto de partida para concretizá-la, em algum nível, mínimo que seja, na experiência mística e estética. Imaginar a suprema felicidade inimaginável é uma maneira de dela se aproximar. Esse exercício sensorial, emotivo, reflexivo e espiritual de dar o máximo de nossa percepção em prol do máximo concebível de sublime, desafiando a imaginação e a concepção, violentando-as e fortalecendo-as, é uma das meditações mais difíceis de serem feitas hoje.

Hoje o masoquismo cristão medieval deu lugar ao hedonismo pequeno-burguês consumista. Por causa do cinema e televisão, que dão mundos sensoriais ficcionais cada vez mais perfeitos à disposição da passividade estéril do espectador, a capacidade de imaginar e perceber mantêm-se em estado de hibernação permanente. Quanto mais a tecnologia (agora vem o 3D, mais tarde aparecerá a realidade virtual, que será passo a passo cada vez mais incorporada...) rouba aquilo que deveríamos exercitar com a atividade da imaginação estética e do pensamento poético, menos ela satisfará de fato, na aparência do gozo passivo; mais insatisfeitos ficaremos e menos capacidade teremos de nos satisfazer.

Porém, o foco místico dos textos religiosos e a arte nos mostram que poderíamos já "acessar" o "reino dos céus", se exercitarmos a imaginação e o pensamento, que funcionam como escada, para conseguir superá-los na experiência interior. Mas o portal, o umbral, o acesso ficará cada vez mais difícil, distante e remoto quanto mais se depender da indústria cultural, quanto mais se deixar que o roubo de nosso aparelho perceptivo vá cada mais longe.

A falsa concretização das maravilhas do céu no cinema está tornando a vida mundana cada vez mais infernal, sendo o inferno não o mundo do sofrimento evidente, mas o da falsa felicidade obscura; como aqueles traficantes que dão crack ou heroína para meninas viciadas: enquanto elas estão em outro lugar são estupradas. O cinema e a televisão são, sem dúvida, um estupro da percepção aparentando ser um pequeno alívio diário. Como já ficou claro no Fausto, o pacto com o diabo, ao aumentar o poder terrestre, dá um pequeno alívio à angústia com aventuras mundanas, mas efetivamente se afasta muito da felicidade. No caso de Fausto, pelo menos as aventuras são reais; no caso do espectador e sua novela, contudo, tudo não passa de ilusão. Sob o preço de um reles alívio, o espectador vende a alma, isto é, seu aparelho perceptivo, para o capital.

Entretanto, a mensagem dos santos e dos artistas, dos santos artistas e dos artistas santos, está aí: e se, da tribulação infernal da angústia, em vez de passarmos para o falso alívio da imagem digital, exercitarmos a perseverança de encarar o trágico com a arte e a filosofia, por um lado, e conceber, por outro, a cada instante, a vida bem-aventurada? Arte e filosofia de um lado, como os intelectuais ocidentais praticam; meditação de outro, acrescento agora, aproveitando o melhor do oriente e de um ocidente esotérico intrinsecamente ligado à arte moderna.
Não é preciso fé para que eu garanta: da perseverança ascética bem direcionada para a experiência mística a distância é curta; cada experiência é um tijolo para construir a vida eterna no instante, em outras palavras, a iluminação.

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