dialética negativa

Thursday, April 08, 2010

Sobre Valdo Motta: questão da formação literária

Caros Alunos,
trabalharemos com o artigo da professora da USP IUMNA MARIA SIMON,"REVELAÇÃO E DESENCANTO:
A POESIA DE VALDO MOTTA, Novos Estudos Cebrap, n. 70 novembro 2004.

Baixem aqui:
http://www.cebrap.org.br/imagens/Arquivos/revelacao_e_desencanto.pdf
E poemas de Waldo Motta. baixem aqui:
http://www.rosanycosta.com.br/arquivos/category/1-e-books.html?download=245%3Awaldo-motta&start=180

Cito os trechos mais importantes de um e outro texto.

p.211
A formação literária não-convencional, com toda a precariedade que
pressupõe, pode vir a ser uma força, um "gesto ativo de criação", na
expressão de Sérgio Buarque de Holanda, a nos mostrar que se um
poeta tem algo a dizer ele é capaz de dialogar com todas as correntes
contemporâneas e superar as limitações de cada uma delas.

O artigo é um estudo sobre o livro Bundo e outros poemas. Campinas, SP : Ed. da Unicamp, 1996. 

Se o colapso da modernização
também se dá no âmbito da arte, a questão que fica é o que podem fazer
com o legado da experiência moderna aqueles setores excluídos que não
usufruíram em quase nada as promessas da modernização e só
sofreram, às vezes tragicamente, suas conseqüências, sobretudo numa
sociedade tão espoliadora como a brasileira.

Citação do livro de Valdo Motta:
http://www.rosanycosta.com.br/arquivos/category/1-e-books.html?download=245%3Awaldo-motta&start=180

DEUS FURIOSO
Waldo Motta
Estendi mãos generosas
a quantos o permitiram
e disse: sou Deus.
Porém, quem acreditou?

Fui humilhado,
escarnecido: Deus viado?
Fui negado e combatido.
Em meu amor entrevado,
cerrei lábios e ouvidos.
Até o amor reprimido
virar ódio desatado.
Rasguem céus e infernos,
ó gemidos e brados
de amor ressentido.
Raios partam quantos
meu amor tenham negado.
Prorrompam tormentas
em corações petrificados.
Quero ser amado
quero ser amado
quero ser amado

De busca de autoconhecimento em Waw, escrito entre 1982 e 1991,
a poesia se tornará em Bundo, de 1995, veículo para a formulação de
uma ciência própria, uma espécie de sistema poético e simbólico que ele
inventa contra uma sociedade em que não tem lugar e que nem tem
meios de transformar.
Para isso mobiliza todos os recursos e saberes
que estão à mão, do mais corriqueiro, como o "bicharês" (assim ele
gosta de chamar a gíria gay), ao mais esotérico: Bíblia, misticismo,
orientalismos, tantrismo, cabala, mitologia clássica e afrobrasileira.
Valdo não abandona nada do que viu, experimentou e aprendeu ao
longo da vida; soma e multiplica (é numerólogo convicto) e tudo
incorpora à sua expressão, como que num instinto de preservação.

VÓRTICE
Waldo Motta
E como os deuses me agraciassem
com a peste que me lavra a palavra
4
e me escalavra veias, nervos, plexos;
e como por emblema desta fúria
que em mim grassa - nem graça nem desgraça,
eu só tenha este séquito de traças
zanzando pela casa e em meu crânio;
e como nesta altura da descida
aos círculos do inferno eu só me eleve;
e como nada reste além da réstia
do que em mim é alheio e me arrasta
em seus rastos de luz na vasta treva,
que me resta, que me resta, e se é sina,
senão me dar, rabinho entre as pernas,
e coração na boca, e o cu na mão,
e ganindo no êxtase da dor,
que me resta senão a imolação,
o gozo da escarificação
nos cacos do Espelho, na moenda
do amor me revolvendo, e assim volvendo
ao pó, ao ar, à luz, ao Ser Essente?

p.214
O primeiro
poema, "Religião", apresenta um procedimento de construção
recorrente no livro, em que a auro-ironia quebra o tom grave com a
expressão corriqueira, desestabilizando os termos edificantes do poder
conferido à poesia e ao poeta com a exposição da imagem frágil e
carente de um sujeito aguerrido, de voz empostada e altiva:

RELIGIÃO
Waldo Motta
A poesia é minha
sacrossanta escritura,
cruzada evangélica
que deflagro deste púlpito.

Só ela me salvará
da goela do abismo.
Já não digo como ponte
que me religue
a algum distante céu,
mas como pinguela mesmo,
elo entre alheios eus.

A gesticulação arrogante e pretensiosa da
primeira estrofe aos poucos se desmancha na segunda, onde a poesia,
além de meio sagrado de religação, se alça a única saída para a redenção
individual — é essa a religião do poeta e o sistema de salvação que
começa a ser esboçado em Waw e será armado como doutrina em Bundo.
A auto-irrisão corrói a imagem heróica do poeta e o que possa haver de
grave e sublime na gesticulação encenada "deste púlpito". Ironizado o
obstáculo exterior ("goela do abismo") e diminuída a missão redentora
da poesia ("ponte"), o poema termina em escárnio que critica o gesto
inicial, a mostrar que sua empostação é elemento de auto-engano e que
sua ligação com o divino se esgota ali mesmo no plano material. Ou
melhor, a relação com a espiritualidade é contaminada pelos meios
materiais de se chegar a ela: de "sacrossanta escritura" a poesia é
reduzida a "pinguela" entre "alheios eus". Ou esta pinguela liga nada a
ninguém e o próprio eu se multiplica alheio a si mesmo, ou é o elo que
junta solidariamente os eus de outrem, tanto os iguais a ele (outros
homossexuais e excluídos) como toda a humanidade. De qualquer
forma, a segunda alternativa, posto que rebaixe o tom e o teor da nobre
missão, compensa a irrealizada ligação eu-céu (Deus), tornando a
poesia uma espécie de religião do indivíduo em busca de si, aqui
mesmo no chão da "ordinária e infame realidade".

Detenho-me em "Religião" com o intuito de indicar que o desacerto
entre pretensão e fragilidade, entre a grandeza da missão e a precariedade de
meios, com equivalentes quebras na empostação, no jogo imagético e na
linguagem, impregna a substância da expressão dos poemas de Waw.

p.213
A serviço de dissonâncias
de grande rendimento estético, prosaico e poetizado aqui andam
juntos, assim como sarcasmo e eloqüência.

Posta lado a lado com a poesia marginal, essa é uma poesia formalista
que elabora uma espontaneidade estudada, cuja espessura mítica e
simbólica não se rende ao cotidiano banal.

Eduardo Guerreiro B. Losso: comparar com o sublime do horror em Bataille e também em Roberto Piva

Noutras modalidades poéticas em que predomina o discurso sentencioso,
de entoação pregacional ou oracular (mais presentes em
Bundo), a sobrecarga de conteúdos simbólicos exaspera a discrepância
entre o alto e o baixo, o sagrado e o humano, a Bíblia e o corpo, criando
relações ao mesmo tempo sarcásticas e jocosas que desagradam tanto o
leitor beato quanto o homofóbico. Símbolos sagrados se associam ao
erotismo anal, o "buraquinho" é o trono do reino de Deus, referências
bíblicas e mitológicas se misturam ao chulo, ao bicharês, o Santo
Espírito é invocado para a felação, e daí a outras afrontas.
Ainda que
estranhe o teor de agressividade das imagens e as transições perversas
do registro lingüístico, nem lhes perdoe a falta de compostura
"literária", o leitor reconhece a força da dicção poética, que é obscena, às
vezes sacrílega, sempre herética, mas não libertina.
p. 214
O lirismo em sua mescla estilística, além das qualidades de
imediatez atrás apontadas, é também elaborado em diálogo com poetas
modernos e antigos, cujas referências são expostas nas epígrafes, nas
imagens, nas formas de composição, na citação explícita sem alçapões.

Por exemplo, o tropo da vida como viagem ensandecida, emprestado de
Rimbaud, em particular de "Le bateau ivre", apesar de convencional e
corrente, se traveste da experiência imediata do presente para ilustrar a
aventura espiritual do sujeito rumo à descoberta e à explicação de sua
identidade sexual e social.
217
a
força da formulação está em exigir que os pobres e marginais partilhem
o legado da cultura universal. 
Parecem evidentes as vantagens dessa
posição para a criação poética, por ampliar seu alcance e sua relevância,
e também por pretender o acesso dos excluídos ao mundo do espírito,
sem especializações e com radicalidade verdadeira.

Eduardo Guerreiro B. Losso: tirar a força da máxima humildade é um mote corrente na mística cristã.
Essa contradição entre grandiosidade dos propósitos e precariedade dos meios toca na questão do enfrentamento do niilismo em conflito com a esperança redendora.
219
"
sede acabará achando a fonte/e hás de partilhar os teus prodígios./Tão
mais humilde seja o teu barco/ mais longe irás, e até contra a maré"
O pano de fundo é a "infame realidade" de
sempre, mas o tratamento literário é outro, já que a poesia é concebida
como "revelação", meio de criação de novas realidades e de autoexaltação.

"No 
fervor das paixões retemperei o espírito e, satisfeitas minhas ânsias,
hoje descanso no Eterno, em núpcias comigo./ Descobri em meu corpo
a réplica do universo, o umbigo do ubíquo. No âmago do abismo
encontrei o bem e o mal em comunhão. E nunca mais fiz perguntas./
Serpentes me coroam".

232
Penso que o sistema de salvação funciona como um planejamento
estético que de algum modo corresponde ao desejo de emancipação do
poeta, cuja meta é eliminar a distância entre arte e vida ("Não quero
apenas escrever, mas também ser o que escrevo", diz Valdo no seu
prefácio a Bundo e outros poemas) e socializar a poesia, torná-la meio
prático de conhecimento e de criação de novas realidades.
233
Se essa dicção exige um teor de persuasão, uma
suspensão da descrença e um impulso de expressão quase arcaicos, ela
não é pluralista como o é boa parte da produção poética atual, em que
os procedimentos fragmentários e paratáticos da neovanguarda convivem
com um lirismo e um expressionismo débeis.

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