Teoria da Literatura II - framentos 2
Walter Benjamin sobre Proust
Unold encontrou a ponte
para o sonho. Toda interpretação sintética de Proust deve
partir necessariamente do sonho. Portas imperceptíveis a ele
conduzem. Ê nele que se enraíza o esforço frenético de Proust,
seu culto apaixonado da semelhança.
A seme-
lhança entre dois seres, a que estamos habituados e com que
nos confrontamos em estado de vigília, é apenas um reflexo
impreciso da semelhança mais profunda que reina no mundo
dos sonhos, em que os acontecimentos não são nunca idênti-
cos, mas semelhantes, impenetravelmente semelhantes entre
si.
45
Como
Proust, também nós somos hóspedes que, sob uma insígnia
vacilante, cruzamos uma soleira além da qual a eternidade e a
embriaguez estão à nossa espera. Com razão, Fernandez dis-
tinguiu, em Proust, um thème de l'éternité de um thème du
temps. Mas essa eternidade não é de modo algum platônica
ou utópica: ela pertence ao registro da embriaguez.
A eternidade
que Proust nos faz vislumbrar não é a do tempo infinito, e sim
a do tempo entrecruzado.
Ê o mundo em estado
de semelhança, e nela reinam as "correspondências", capta-
das inicialmente pelos românticos, e do modo mais íntimo por
Baudelaire, mas que Proust foi o único a incorporar em sua
existência vivida. É a obra da mémoire involontaire, da força
rejuvenescedora capaz de enfrentar o implacável envelheci-
mento.
46
No instante, a paisagem se agita
como um vento. "Ah! Que le monde est grand à la clarté des
lampes! Aux yeux du souvenir que le monde est petit!" Proust
conseguiu essa coisa gigantesca: deixar no instante o mundo
inteiro envelhecer, em torno de uma vida humana inteira.
A la recherche du temps perdu é a tentativa interminável de
galvanizar toda uma vida humana com o máximo de consciên-
cia.
Dificilmente terá havido na literatura ocidental uma ten-
tativa mais radical de auto-absorção, desde os exercícios espi-
rituais de Santo Inácio de Loyola.
O que parece tão
irritante e caprichoso em muitas anedotas é que nelas a inten-
sidade única da conversa se combina com um distanciamento
sem precedentes com relação ao interlocutor.
Proust,
essa velha criança, profundamente fatigado, deixou-se cair no
seio da natureza não para sugar seu leite, mas para sonhar,
embalado com as batidas do seu coração.
Benjamin sobre Kafka
161
Porém o esquecimento diz sempre res-
peito ao melhor, porque diz respeito à possibilidade da reden-
ção. "A idéia de querer ajudar-me", diz, ironicamente, o espí-
rito sempre inquieto do caçador Gracchus, "é uma doença
que deve ser curada na cama." Os estudantes não dormem,
por causa dos seus estudos, e talvez a maior virtude dos estu-
dos é mantê-los acordados. O artista da fome jejua, o guar-
dião da porta silencia e os estudantes velam: assim, ocultas,
operam em Kafka as grandes regras da ascese.
Benjamin sobre o Narrador
203
narrador
Em em outras palavras: quase nada do que acontece esta a servico de
narrativa, e quase tudo está a serviço da informação.
205
Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele
escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente
o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está
^guardado o dom narrativo. Ε assim essa rede se desfaz hoje
por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios* em
torno das mais antigas formas de trabalho manual.
Valéry conclui suas reflexões com as seguintes palavras:
"dir-se-ia que o enfraquecimento nos espíritos da idéia de
eternidade coincide com uma aversão cada vez maior ao tra-
balho prolongado". A ideia de eternidade sempre teve na
morte sua fonte mais rica. Se essa idéia está se atrofiando,
Jemos que_concluir que o rosto da morte deve ter assumido
outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu a
comunicabilidade da experiência à medida que a arte de
narrar se extinguia.
215
Comum a todos os grandes narradores é a
facilidade com que se movem para cima e para baixo nos
degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada
que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens — é
a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o
mais profundo choque da experiência individual, a morte, não
representa nem um escândalo nem um impedimento.
215
O conto
de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua
ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é
enfrentar as forgas do mundo mítica com astúcia e arrogância.
216
a especulação de Orígenes, re-
jeitada pela Igreja de Roma, sobre a apocatastasis, a admis-
são de todas as almas ao Paraíso, desempenha um papel signi-
ficativo. Leskov foi muito influenciado por Orígenes
No
espírito das crenças populares russas, interpretou a ressurrei-
ção menos como uma transfiguração que como um desencan-
tamento, num sentido semelhante ao do conto de fada.
Quanto mais baixo Leskov desce na hierarquia das cria-
turas, mais sua concepção das coisas se aproxima do misticismo. Aliás, como veremos, há indícios de que essa caracte-
rística é própria da natureza do narrador.
Para esclarecer o significado dessa importante narrativa,
não há melhor comentário que o trecho seguinite de Valéry,
escrito num contexto completamente diferente. " A observação
do artista pode atingir uma profundidade quase mística. Os
_objetos iluminados perdem os seus nomes: sombras e clari-
dades formam sistemas e problemas particulares que não de-
pendem de nenhuma ciência, que não aludem a nenhuma
prática, mas que recebem toda sua existência e todo o seu
valor de certas afinidades singulares entre a alma, o olho e a
mão de uma pessoa nascida .para surpreender tais afinidades
em si mesmo, e para as produzir"
Unold encontrou a ponte
para o sonho. Toda interpretação sintética de Proust deve
partir necessariamente do sonho. Portas imperceptíveis a ele
conduzem. Ê nele que se enraíza o esforço frenético de Proust,
seu culto apaixonado da semelhança.
A seme-
lhança entre dois seres, a que estamos habituados e com que
nos confrontamos em estado de vigília, é apenas um reflexo
impreciso da semelhança mais profunda que reina no mundo
dos sonhos, em que os acontecimentos não são nunca idênti-
cos, mas semelhantes, impenetravelmente semelhantes entre
si.
45
Como
Proust, também nós somos hóspedes que, sob uma insígnia
vacilante, cruzamos uma soleira além da qual a eternidade e a
embriaguez estão à nossa espera. Com razão, Fernandez dis-
tinguiu, em Proust, um thème de l'éternité de um thème du
temps. Mas essa eternidade não é de modo algum platônica
ou utópica: ela pertence ao registro da embriaguez.
A eternidade
que Proust nos faz vislumbrar não é a do tempo infinito, e sim
a do tempo entrecruzado.
Ê o mundo em estado
de semelhança, e nela reinam as "correspondências", capta-
das inicialmente pelos românticos, e do modo mais íntimo por
Baudelaire, mas que Proust foi o único a incorporar em sua
existência vivida. É a obra da mémoire involontaire, da força
rejuvenescedora capaz de enfrentar o implacável envelheci-
mento.
46
No instante, a paisagem se agita
como um vento. "Ah! Que le monde est grand à la clarté des
lampes! Aux yeux du souvenir que le monde est petit!" Proust
conseguiu essa coisa gigantesca: deixar no instante o mundo
inteiro envelhecer, em torno de uma vida humana inteira.
A la recherche du temps perdu é a tentativa interminável de
galvanizar toda uma vida humana com o máximo de consciên-
cia.
Dificilmente terá havido na literatura ocidental uma ten-
tativa mais radical de auto-absorção, desde os exercícios espi-
rituais de Santo Inácio de Loyola.
O que parece tão
irritante e caprichoso em muitas anedotas é que nelas a inten-
sidade única da conversa se combina com um distanciamento
sem precedentes com relação ao interlocutor.
Proust,
essa velha criança, profundamente fatigado, deixou-se cair no
seio da natureza não para sugar seu leite, mas para sonhar,
embalado com as batidas do seu coração.
Benjamin sobre Kafka
161
Porém o esquecimento diz sempre res-
peito ao melhor, porque diz respeito à possibilidade da reden-
ção. "A idéia de querer ajudar-me", diz, ironicamente, o espí-
rito sempre inquieto do caçador Gracchus, "é uma doença
que deve ser curada na cama." Os estudantes não dormem,
por causa dos seus estudos, e talvez a maior virtude dos estu-
dos é mantê-los acordados. O artista da fome jejua, o guar-
dião da porta silencia e os estudantes velam: assim, ocultas,
operam em Kafka as grandes regras da ascese.
Benjamin sobre o Narrador
203
narrador
Em em outras palavras: quase nada do que acontece esta a servico de
narrativa, e quase tudo está a serviço da informação.
205
Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele
escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente
o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está
^guardado o dom narrativo. Ε assim essa rede se desfaz hoje
por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios* em
torno das mais antigas formas de trabalho manual.
Valéry conclui suas reflexões com as seguintes palavras:
"dir-se-ia que o enfraquecimento nos espíritos da idéia de
eternidade coincide com uma aversão cada vez maior ao tra-
balho prolongado". A ideia de eternidade sempre teve na
morte sua fonte mais rica. Se essa idéia está se atrofiando,
Jemos que_concluir que o rosto da morte deve ter assumido
outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu a
comunicabilidade da experiência à medida que a arte de
narrar se extinguia.
215
Comum a todos os grandes narradores é a
facilidade com que se movem para cima e para baixo nos
degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada
que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens — é
a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o
mais profundo choque da experiência individual, a morte, não
representa nem um escândalo nem um impedimento.
215
O conto
de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua
ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é
enfrentar as forgas do mundo mítica com astúcia e arrogância.
216
a especulação de Orígenes, re-
jeitada pela Igreja de Roma, sobre a apocatastasis, a admis-
são de todas as almas ao Paraíso, desempenha um papel signi-
ficativo. Leskov foi muito influenciado por Orígenes
No
espírito das crenças populares russas, interpretou a ressurrei-
ção menos como uma transfiguração que como um desencan-
tamento, num sentido semelhante ao do conto de fada.
Quanto mais baixo Leskov desce na hierarquia das cria-
turas, mais sua concepção das coisas se aproxima do misticismo. Aliás, como veremos, há indícios de que essa caracte-
rística é própria da natureza do narrador.
Para esclarecer o significado dessa importante narrativa,
não há melhor comentário que o trecho seguinite de Valéry,
escrito num contexto completamente diferente. " A observação
do artista pode atingir uma profundidade quase mística. Os
_objetos iluminados perdem os seus nomes: sombras e clari-
dades formam sistemas e problemas particulares que não de-
pendem de nenhuma ciência, que não aludem a nenhuma
prática, mas que recebem toda sua existência e todo o seu
valor de certas afinidades singulares entre a alma, o olho e a
mão de uma pessoa nascida .para surpreender tais afinidades
em si mesmo, e para as produzir"
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