dialética negativa

Wednesday, July 25, 2012

Teoria da literatura II 06-2012

No livro Hermenêutica do sujeito, p. 115, Foucault diferencia o tipo de cuidado de si do Alcebíades, de Platão, do período helenístico.

Na
prática de si que vemos desenvolver-se no decurso do perío-
do helenístico e romano, ao contrário, há um lado formador
que é essencialmente vinculado à preparação do indivíduo,
preparação porém não para determinada forma de profis-
são ou de atividade social: não se trata, como no Alcibíades,
de formar o indivíduo para tomar-se um bom governante;
trata-se, independentemente de qualquer especificação pro-
fissional, de formá-lo para que possa suportar, como con-
vém, todos os eventuais acidentes, todos os infortúnios pos-
síveis,  todas as desgraças e  todos os reveses que possam
atingi-lo. Trata-se, conseqüentemente, de montar um me-
canismo de segurança, não de inculcar um saber técnico e
profissional ligado a determinado tipo de atividade. Esta for-
mação, esta armadura se quisermos, armadura protetora em
relação ao resto do mundo, a todos os acidentes ou aconteci-
mentos que possam produzir-se, é o que os gregos chama-
vam de paraskheué,  aproximadamente traduzido por Sêneca
como instructio.  A  instructio  é  esta armadura do indivíduo
em face [dos] acontecimentos e não a formação em função de
um fim profissional determinado. Portanto, nos séculos I-lI,
encontramos este lado formador da prática de si.

Comparar com o poema de Armando Freitas Filho do livro Máquina de escrever, p. 221-222.
(retirado originalmente do livro De corpo presente, de 1975)

Auto-retrato 

No papel fino do espaço 
a minha figura pousa 
seus traços e braços: 
pedaços, quebra-cabeça 

armando as suas peças 
partes, pedras e passos: 
a cada gesto o contato 
tão tátil de fragmentos 

que os dedos do acaso 
adaptam, múltiplos 
com seus vários perfis 
contrários, numa soma 

de avessos e retalhos 
e a imagem sob a pele 
é alinhavada: andaimes 
de cartas, o castelo 

embaralhado pelo vento 
que saco de flâmulas 
de naipes inventados: 
construção de dados 

com seus inúmeros 
números, lados, ludus 
o encontro de cubos 
neste espelho de papel 

onde o puzzle do corpo 
uma armadura de lacunas 
em tempo de pressa e perda 
armou seus erros e hiatos.

Hipótese: o poema de Armando nos mostra como é impossível assegurar-se contra a "armadura de lacunas"  do corpo, que nos enreda na "pressa e perda" do tempo. A figura do poeta no papel é uma "construção de dados" que monta e desmonta o seu próprio quebra-cabeça. Se o poema não parece armar-se diante dos acontecimentos, como lemos no trecho do Foucault acima, ele faz algo semelhante trazendo para si o próprio caos exterior, constrói e desconstrói suas "partes, pedras, passos". As palavras em série de alguns versos, a estrutura em parte livre da sintaxe, exibe a tensão entre montagem e desmontagem do eu lírico na escrita poética. 

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