dialética negativa

Monday, April 09, 2012

Literatura Portuguesa III - fragmentos II

Fernando Pessoa: livro do desassossego


Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que
faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas
crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura
informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente,
por todos, por tudo.



Enterneço-me com uma
largueza de coisa infinita



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Passam com todas as atitudes com que se define a consciência, e não têm
consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns
inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros
jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo
que não existe.



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E é por isso que o meu estudo atento e constante
é essa mesma humanidade vulgar que repugno e de quem disto. Amo-a porque a
odeio. Gosto de vê-la porque detesto senti-la. A paisagem, tão admirável como
quadro, é em geral incómoda como leito.



Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos.


76.
Penso às vezes com um agrado (em bissecção) na possibilidade futura de uma
geografia da nossa consciência de nós próprios. A meu ver, o historiador futuro das
suas próprias sensações poderá talvez reduzir a uma ciência precisa a sua atitude
para com a sua consciência da sua própria alma. Por enquanto vamos em princípio
nesta arte difícil – arte ainda, química de sensações no seu estado alquímico por
ora. Esse cientista de depois de amanhã terá um escrúpulo especial pela sua própria
vida interior. Criará de si mesmo o instrumento de precisão para a reduzir a
analisada. Não vejo dificuldade essencial em construir um instrumento de precisão,
para uso auto-analítico, com aços e bronzes só do pensamento. Refiro-me a aços e
bronzes realmente aços e bronzes, mas do espírito. E talvez mesmo assim que ele
deva ser construído. [o resto também...]



Talvez se descubra que aquilo a que chamamos Deus, e que tão patentemente
está em outro plano que não a lógica e a realidade espacial e temporal, é um nosso
modo de existência, uma sensação de nós em outra dimensão do ser. Isto não me
parece impossível.



Os sonhadores actuais
são talvez os grandes precursores da ciência final do futuro.



Como se não tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa
de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos
sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para
o quintal por um movimento indolente do pé à passagem.



89.
A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma
actividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe estéril, e
o uso fixo de normas de pensamento filosófico e metafísico cuja importância se
sente ser nula.



O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos – a da encarnação disforme do não-ser.


Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado na cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só

a cela é tudo?

E este estado de falta de alma, que seria cômodo, porque certo, num deitado ou num recumbente, é singularmente incômodo, doloroso até, num homem que vai andando pela rua.


Os Deuses, se são justos em sua injustiça, nos conservem os sonhos ainda quando sejam impossíveis, e nos dêem bons sonhos, ainda que sejam baixos. Hoje, que não sou velho ainda, posso sonhar com ilhas do Sul e com Índias impossíveis; amanhã talvez me seja dado, pelos mesmos Deuses, o sonho de ser dono de uma tabacaria pequena, ou reformado numa casa dos arredores. Qualquer dos sonhos é o mesmo sonho, porque são todos sonhos. Mudem-me os deuses os sonhos, mas não o dom de sonhar.



Todos os pensamentos, que têm feito viver homens, todas as emoções, que os homens têm deixado de viver, passaram por minha mente, como um resumo escuro da história, nessa minha meditação andada à beira-mar. [...]


O melhor e o mais púrpura é abdicar. O império supremo é o do Imperador que abdica de toda a vida normal, dos outros homens, em quem o cuidado da supremacia não pesa como um fardo de jóias.


E é então que eu sinto com visões claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar.

Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser.



Benjamin sobre Proust
47-48
Proust,
essa velha criança, profundamente fatigado, deixou-se cair no
seio da natureza não para sugar seu leite, mas para sonhar,
embalado com as batidas do seu coração. Ê assim, em sua fra-
queza, que precisamos vê-lo, para compreender a maneira fe-
liz com que Jacques Rivière procurou interpretá-lo, a partir
dessa fraqueza: "Marcel Proust morreu por inexperiência, a
mesma que lhe permitiu escrever sua obra. Morreu por ser
estranho ao mundo, e por não ter sabido alterar as condições
48
de vida que para ele se tinham tornado destruidoras. Morreu
porque não sabia como se acende um fogo, como se abre uma
janela". Ε morreu, naturalmente, de sua asma nervosa.




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