Teoria da literatura II 2013-01 sagrado e profano
Platão - Apologia de Sócrates
Portanto, mesmo que agora me dispensásseis, desatendendo ao parecer de Ânito, segundo o qual, antes do mais, ou eu não devia ter vindo aqui, ou, já que vim, é impossível deixar de condenar-me à morte, asseverando ele que, se eu lograr absolvição, logo todos os vossos filhos, pondo em prática os ensinamentos de Sócrates, estarão inteiramente corrompidos; mesmo que, apesar disso, me dissésseis:
"Sócrates, por ora não atenderemos a Ânito e te deixamos ir, mas com a condição de abandonares essa investigação e a filosofia; se fores apanhado de novo nessa prática, morrerás"; mesmo, repito, que me dispensásseis com essa condição, eu vos responderia: "Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vós; enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: 'Meu caro, tu, um ateniense, da
cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma?'" E se algum de vós redargüir que se importa, não me irei embora deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e confundir e, se me parecer que afirma ter- adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que
vale menos. É o que hei de fazer a quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais próximos no sangue. Tais são as ordens que o deus me deu, ficai certos. E eu acredito que jamais aconteceu à cidade maior bem que minha obediência ao deus.
Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens particulares e públicos. Se com esses discursos corrompo a mocidade, seriam nocivos esses preceitos; se alguém afirmar que digo outras coisas e não essas, mente. Por tudo isso, Atenienses, diria eu, quer atendais a
Ânito, quer não, quer me dispenseis, c quer não, não hei de fazer outra coisa, ainda que tenha de morrer muitas vezes.
"...os nervos - órgãos do tato da consciência histórica" Adorno
"Mesmo a repulsiva divisão do discurso entre fala profissional e estritamente convencional atesta o pressentimento da impossibilidade de dizer o pensado sem arrogância, sem atentado ao tempo do outro. Constitui obrigação premente de uma forma de exposição minimamente sustentável que não perca de vista tais experiências e dê a elas expressão pelo ritmo, intensidade e densidade, embora de modo descompromissado". Adorno - Minima Moralia
Christoph Türcke
Pois onde tudo é enobrecido, a nobreza deixa de existir e o que ocorre se pode exprimir através do conhecido título de um livro: A transfiguração do familiar (Arthur Danto).
Mas aqui ocorre ao mesmo tempo o seu contrário: a familiarização do excepcional. De fato, na fotografia os extremos se interpenetram. Uma prática mágica arcaica, a paralisação do instante, é consumada com os meios mais modernos. Mas originalmente o que tinha de ser paralisado não era algo qualquer, e sim o que fazia arrepiar até a medula, o que era sensacional no mais alto grau, era sensação par excellence: o pavor. Tratava-se de fugir dele. A ideia cristã do agora estático como momento de felicidade eternizado é um estribilho tardio para isso. Ele transforma a ideia original negativa de salvação, como a de ser poupado, na ideia positiva de salvação, como bem-aventurança eterna, mas não muda em nada o fato de que a paralisação do instante está indisfarçavelmente associada com a salvação: seja querer salvar daquilo que se paralisa, seja querer salvar aquilo que se paralisa. De uma maneira ou de outra, trata-se do extremo dos sentimentos. Tanto o pavor paralisado quanto o seu negativo, o instante feliz paralisado, consumam o ato da epifania do sagrado; são sensação no significado extremo da palavra. [...]
O que Marx censurou na mercadoria em geral, "que é uma coisa muito espinhosa, cheia de sutilezas metafísicas e caprichos teológicos", vale plenamente para a fotografia. Em cada uma de suas tomadas, por mais pueris que sejam, ela consuma um movimento duplo teológico-metafísico: profana algo sagrado, ressacraliza algo profano.
Türcke, Christoph. Sociedade excitada: filosofía da sensação. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 191-192.
Ao longo de 150 anos se falou em toda parte que a Revolução Industrial não foi apenas a devastação que o Manifesto comunista diagnosticou em sua primeira fase: "Tudo o que era sólido e estável se dissipa, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens finalmente são obrigados a encarar com olhos serenos suas condições de vida e suas relações mútuas"26. Isso de fato estava certo, porém era apenas um dos lados da reviravolta. Ela tinha dois. A profanação do sagrado era também a sacralização do mercado, a degradação de tudo o que era configurador de sentido para mera mercadoria caminhava lado a lado com a ascensão da mercadoria para uma encarnação de sentido e salvação.
Türcke, Christoph. Sociedade excitada, p.192-193
Christoph Türcke
"Por volta de meados do século XIX, com o cortejo triunfal da fotografia, a imprensa popular, os folhetins, romances sensacionalistas também começaram a inundar o mercado e encontraram, ao lado dos salões de festa, dos bulevares e dos teatros de revista, uma massa de consumidores mista e variada. Como reação aos excessos de final de semana, praticados pelo proletariado nos bares, nas ruas e nos salões de dança, foram tomadas medidas por meio de uma recreação racional. Ela possibilitou o incremento do prazer da leitura nos proletários, apresentou-lhes o reflexo — e também o lixo — da cultura burguesa, ao mesmo tempo em que tornou notório o fato de o burguês ter mais prazer na escória cultural do que em suas grandes obras de arte, com as quais se fanfarronava. Ε então, tal recreação preparou gradativamente cada disposição de massa sensório-estética que o choque fílmico fulmina como se fosse um raio." Christoph Türcke - Sociedade excitada p. 264
O capital enquanto relação de produção é objetivamente cínico: realiza os direitos humanos na mesma medida em que deles escarnece.
Das Kapital als Produktionsverhältnis ist objektiv zynisch: Es realisiert die Menschenrechte, indem es sie verhöhnt.
Türcke, Christoph. Kassensturz. Zur Lage der Theologie. Springe: Zu Klampen, 1992, p. 122.
Murilo Mendes - do livro, O sinal de Deus
GENEALOGIA
Eu já não tenho idade. Tenho a sabedoria retrospectiva dos profetas. Fui gerado pela Poesia. As estrelas girogiravam.
Meu arquivo é o mundo. No princípio era o Verbo. Também eu recebi da sua plenitude. Participo da vitalidade divina. Meu ofício consiste em sacralizar todas as coisas. Sou de raça real e sacerdotal. E me destruí porque pronunciei o fiat. Mas quem quiser perder sua vida a ganhará. Poetas, sirvamos os mistérios. Ajuntai-vos comigo para a grande ceia de Deus. Convidemos os pobres, os famintos, os estropiados, os sem-trabalho, os miseráveis. E seremos todos um.
Mendes, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 761-762.
do livro Discípulo de Emáus, p.742
Todo espírito poético tende a reunir elementos para uma sacralização contínua de fatos e de objetos. Assim tudo marcha para uma espécie de canonização do universo — principalmente através do amor e da culturaromântica.
de A idade do serrote,
Movido por um instinto profundo, sempre procurei sacralizar o cotidiano, desbanalizar a vida real, criar ou recriar a dimensão do feérico. p. 921
Mendes, Murilo. Ibidem.
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