Memória de um anoitecer
A psicanálise parece dar mais importância ao que não lembramos do que o que lembramos. Mas ela também procura estar atenta às repetições, às invariâncias de um discurso. Há algumas lembranças que são marcantes, únicas, e se caracterizam-se por insistir em retornar, em meio a tantos outros acontecimentos de que nos esquecemos definitivamente. A insistência é em si mesma um mistério, contém um sentido (de algo recalcado, ou, como prefiro pensar, de algo interminável) em suspenso.
Estava anoitecendo, eu e meu pai estávamos saindo de um concerto do Duo Barbieri-Schneiter. Eu estava resfriado. Sempre tive medo de resfriados, pois fico muito enfraquecido e nada faço enquanto não me recuperar. Mas naquele dia eu desejava muito ir ver o duo de violões que admirava e fiz o sacrifício.
Lembro da sensação onírica, luzes da cidade reverberavam nas sombras, os sons do trânsito de embaralhavam enquanto meu pai dirigia o carro. Apesar das sensações desconfortáveis da gripe, havia o conforto de estar retornando para casa. Finalmente eu poderia me dedicar integralmente ao descanso para finalmente, depois, voltar a estudar, como sempre fiz. Uma finalidade é contrária a outra mas uma serve a outra. Uma é a finalidade da outra: descansar era a finalidade com fim, estudar, a sem fim. Parece uma inversão, mas não é. De qualquer forma, hoje aquele descanso-para-o-estudo e aquele estudo descansaram definitivamente. São fantasmas de um desejo antigo.
Quando olhava a cidade, perguntava-me algo como os versos de Murilo Mendes: "Quem são esses fantasmas que se movem nas ruas ... Procuro a amiga tão bela e necessária/ se não está comigo, em mim, é porque não existe" (p. 300, Poesia completa e prosa). Faltava a namorada dos sonhos, mas o pai estava lá, de alguma forma, e as pessoas eram como um cinema, fantasmas de um presente que me abandonaria. Os desconhecidos do passado se tornam inexistências familiares. A mulher tão esperada, outrora sumida, presentifica-se "em mim", e o pai que dirigia o carro agora dirige nuvens de um céu ignorado.
O que sempre resta é a sensasão de existir, com gripe, dor ou saudade. Não posso acreditar que não existo, mas tantos cotidianos, tantos estados de tempo que passei deixaram de existir. É tão inacredítável que haja mudança na sensação de existir que dá a impressão de que "também eu próprio não existo". Só isso, a mudança das fases da vida, da forma do cotidiano - homeopática, minimalista - parece dar a impressão de que algo nos abandonou e algo diferente nos acompanhará daqui para frente.
Gostaria de voar pelos estados de tempo que passei, "voar pelos ares" que um dia respirei e sentir o estranho familiar de uma identidade perdida.
Sou o que eu um dia gostaria que fosse. Mas como gostaria de reencontrar aquele que um dia quis que eu existisse. Essa impossibilidade é bela e provocante.
2
No fundo, é isso que os velhos gostariam de encontrar nos mais jovens. Mas os jovens são seres completamente diferentes, num mundo completamente diferente.
Sou jovem em ser mais velho: é essa a situação de um homem na casa dos 30. Sou um recém-velho. Como professor universitário, verei muitos jovens mais ou menos da mesma idade passarem por mim de semestre a semestre. É curioso como os professores não pensam sobre isso. É tão estranho o sistema nos colocar na situação de conviver o resto de nossas vidas com alunos da mesma faixa de idade, enquanto nós vamos aos poucos envelhecendo. É como se o aluno não ennvelhecesse, como se os mesmos jovens fossem substituindo seus corpos e só o professor continuasse com o mesmo porém acrescentando as rugas (penso no ponto de vista da sala de aula, que é o mais neutro possível).
Ainda falta muito para eu me acostumar a essa situação que, se eu não morrer, acompanhar-me-á durante 30 anos. Serei testemunha do mesmo destino de meus professores. Até que ponto serei melhor, pior, diferente, igual ao que presenciei como aluno-espectador inquieto?
"Vigiarei- olho fértil - a formação das árvores e a migração das estrelas".
"Eu começarei então para mim mesmo".
Estava anoitecendo, eu e meu pai estávamos saindo de um concerto do Duo Barbieri-Schneiter. Eu estava resfriado. Sempre tive medo de resfriados, pois fico muito enfraquecido e nada faço enquanto não me recuperar. Mas naquele dia eu desejava muito ir ver o duo de violões que admirava e fiz o sacrifício.
Lembro da sensação onírica, luzes da cidade reverberavam nas sombras, os sons do trânsito de embaralhavam enquanto meu pai dirigia o carro. Apesar das sensações desconfortáveis da gripe, havia o conforto de estar retornando para casa. Finalmente eu poderia me dedicar integralmente ao descanso para finalmente, depois, voltar a estudar, como sempre fiz. Uma finalidade é contrária a outra mas uma serve a outra. Uma é a finalidade da outra: descansar era a finalidade com fim, estudar, a sem fim. Parece uma inversão, mas não é. De qualquer forma, hoje aquele descanso-para-o-estudo e aquele estudo descansaram definitivamente. São fantasmas de um desejo antigo.
Quando olhava a cidade, perguntava-me algo como os versos de Murilo Mendes: "Quem são esses fantasmas que se movem nas ruas ... Procuro a amiga tão bela e necessária/ se não está comigo, em mim, é porque não existe" (p. 300, Poesia completa e prosa). Faltava a namorada dos sonhos, mas o pai estava lá, de alguma forma, e as pessoas eram como um cinema, fantasmas de um presente que me abandonaria. Os desconhecidos do passado se tornam inexistências familiares. A mulher tão esperada, outrora sumida, presentifica-se "em mim", e o pai que dirigia o carro agora dirige nuvens de um céu ignorado.
O que sempre resta é a sensasão de existir, com gripe, dor ou saudade. Não posso acreditar que não existo, mas tantos cotidianos, tantos estados de tempo que passei deixaram de existir. É tão inacredítável que haja mudança na sensação de existir que dá a impressão de que "também eu próprio não existo". Só isso, a mudança das fases da vida, da forma do cotidiano - homeopática, minimalista - parece dar a impressão de que algo nos abandonou e algo diferente nos acompanhará daqui para frente.
Gostaria de voar pelos estados de tempo que passei, "voar pelos ares" que um dia respirei e sentir o estranho familiar de uma identidade perdida.
Sou o que eu um dia gostaria que fosse. Mas como gostaria de reencontrar aquele que um dia quis que eu existisse. Essa impossibilidade é bela e provocante.
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No fundo, é isso que os velhos gostariam de encontrar nos mais jovens. Mas os jovens são seres completamente diferentes, num mundo completamente diferente.
Sou jovem em ser mais velho: é essa a situação de um homem na casa dos 30. Sou um recém-velho. Como professor universitário, verei muitos jovens mais ou menos da mesma idade passarem por mim de semestre a semestre. É curioso como os professores não pensam sobre isso. É tão estranho o sistema nos colocar na situação de conviver o resto de nossas vidas com alunos da mesma faixa de idade, enquanto nós vamos aos poucos envelhecendo. É como se o aluno não ennvelhecesse, como se os mesmos jovens fossem substituindo seus corpos e só o professor continuasse com o mesmo porém acrescentando as rugas (penso no ponto de vista da sala de aula, que é o mais neutro possível).
Ainda falta muito para eu me acostumar a essa situação que, se eu não morrer, acompanhar-me-á durante 30 anos. Serei testemunha do mesmo destino de meus professores. Até que ponto serei melhor, pior, diferente, igual ao que presenciei como aluno-espectador inquieto?
"Vigiarei- olho fértil - a formação das árvores e a migração das estrelas".
"Eu começarei então para mim mesmo".
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