(anti-)narcisismo especulativo

Para aqueles que gostariam de evitar a todo custo usar o pronome "eu", que proporiam uma ascese de renúncia ao egocentrismo, que tanto se irritaram com o egocentrismo dos outros que resolveram aboli-lo em si próprio, o melhor recado a dar é que não há como fugir do próprio eu nem do eu dos outros. Se houver repulsa ao eu (próprio ou alheio), a existência vira um inferno, pois ele está em todo o lugar. A cena e o espetáculo do eu é constante, tanto do "meu" quanto de qualquer outro. O Eu é um soberano que injeta identidade, consciência, narcisismo e até megalomania - mesmo que a mais discreta e oculta - em qualquer um dos eus humanos por aí. O Eu pode ser mesmo um deus maligno que impôs a todos a falsa certeza de pensar e existir. Ele se multiplica serena e neutramente em seus inumeráveis clones, todos os eus do mundo, e faz todos se acharem a totalidade do que ele é, planos de enorme engano.

A grande beleza das montanhas, da pedra, das nuvens, do céu é precisamente a de não carregar nas costas um eu. A grande beleza dos animais é a de ser uma individualidade sem eu. Se estamos sempre empurrando pela boca deles um eu, por estarmos tão escravizados pelo nosso, isso não significa que eles o aceitam: cheiram o veneno e deixam de lado.