dialética negativa

Tuesday, February 20, 2007

A violência da semiformação, a-formação e constrangimento social

Caros amigos,

Estou na fase mais stressante da minha vida em termos de trabalho, mas adianto que é um ótimo momento e não estou reclamando. Preciso escrever a tese. Adiei a escrita por tentar fazer a melhor pesquisa possível, e agora estou tendo de lutar contra o tempo.

Mesmo assim, depois de dias lendo e escrevendo, de vez em quando passo (mais ou menos de duas em duas semanas) pelo site da globo e vejo as notícias. Então tomo conhecimento dos ataques recentes no final do ano passado, o incêndio do ônibus, o menino João Hélio arrastado, o motorista de taxi pai de família morto uns dois dias depois logo após João Hélio, etc. Esses casos são os mais gritantes, posso imaginar a série de outras coisas que se passam em nosso país, e dois anos e meio fora não é tanto tempo para eu me alienar de nossa realidade.

Apesar de estar no pior momento para me ocupar com outras coisas,

tive uma experiência de luto pelas vítimas inocentes como todos, acabando por

pensar nas vítimas, nos familiares das vítimas, na pilantragem dos responsáveis, na nossa impotência aparentemente incurável e no nosso medo cotidiano dia e noite, inclusive atrapalhando, ou ajudando, a escrita da tese, decidi-me a escrever esse texto. Gostaria de propor a meus amigos mais próximos, e amigos de amigos, uma forma de pensar junto a situação.

Considero o trabalho da Globo e de outras grandes mídias em parte muito bom e de grande esforço. Mas não podemos diminuir, mesmo onde se parece estar denunciando, a dose de responsabilidade deles. Esse será meu movimento no texto: reconhecer o esforço de muitos, nas suas mais diversas áreas, e não diminuir a crítica necessária.

O que quero com esse texto é simplesmente tentar dar minha contribuição com algo do que aprendi e experimentei aqui na Alemanha estudando teoria crítica, a questão da teologia e da mística na arte moderna. Mas não na Alemanha, no Brasil. Especificamente a respeito de crítica social e violência, as aulas de meu orientador brasileiro, João Camillo Penna, que vai publicar um livro sobre violência, foram preciosas.


A dificuldade é pensar que mesmo hoje, no Brasil, as pessoas que teriam condições de vida que eu em parte não tive, quer dizer, as mais bem sucedidas, não usufruem tanto assim de seus privilégios, e fico agora com a vontade de me engajar não pelos que são absolutamente desprivilegiados e vivem na barbárie absoluta, nem só pelos que tiveram o suficiente com muito esforço mas foram vítimas de todo o constrangimento social que nos rodeia como eu e minha família. Penso também nos que aparentemente teriam tudo para gozar dos privilégios recebidos e desenvolvidos pessoalmente, mas não o fazem como os mais invejosos imaginam. Eles não o fazem até como eles mesmos, quando querem tentar esquecer seu medo e aproveitar o que aparentemente têm, supoem estar fazendo, até mesmo naqueles exemplos extremos que por perversão aceitam o mundo como é, porque no fundo são todos vítimas indefesas de nossa barbárie administrada.


Quando eu e outros bolsistas vemos as notícias na Internet, passamos a sentir uma emoção trágica da qual os brasileiros que estão vivenciando o terrível dia a dia - vendo crianças de rua pedido esmola insistentemente, irritantemente, vale acrescentar - nem sempre estão em condições de sentir. Burke e Kant dizem que o sentimento do sublime – a comoção que temos quando vemos uma paisagem num mirante, quando observamos uma tempestade é possível se não estamos ameaçados pela natureza, pois a situação de ameaça nos coloca em estado de risco e não temos como gozar de uma experiência estética desinteressada. Minha experiência aqui foi uma experiência de distanciamento do perigo única na minha vida, e me deu outra dimensão do sentimento sublime pós-moderno de luto pelas vítimas da violência.

(Ray , Gene. Terror and the sublime in art and critical theory: from Auschwitz to Hiroshima to September 11. Palgrave Macmillan New York, NY [u.a.] 2005.)

No Brasil, o que vocês vivenciam e o que eu vivenciei e voltarei a vivenciar é um estágio a menos do distanciamento e um estágio a mais do risco. É o luto no meio da nova guerra atual, enquanto o meu, aqui, foi o luto de um afastamento maior, num sentido mais individual, mas não absoluto, pois minha família e meus amigos continuam . Quem teria essa experiência de afastamento absoluto é o alemão ou o morador daqui que não possui amigos e família nesses locais de risco. Para decepcioná-los, ou não, não sei, eles vêem nossa realidade muito de vez em quando, quando vêem, e são detalhadamente, cotidianamente informados da guerra entre Israel e Palestina, que, perto da nossa, não é nada. Mas essa guerra diz respeito ao destino da Europa, e a nossa não faz diferença para a Europa: esse seria o motivo básico porque a nossa guerra é ignorada pelo mundo.

Nós não estamos numa guerra tradicional. Cada um continua levando a vida. Contudo, estamos num outro tipo de guerra, não estamos nos arriscando cem por cento, como um policial, um traficante ou um morador do complexo do alemão, mas também não estamos ao abrigo disso, num certo sentido estamos mais despreparados (do que o traficante e o policial, o morador do complexo do alemão está na pior situação). A morte do motorista de taxi ocorreu porque ele estava no meio do tiroteio entre os assaltantes e os policiais e procurou se certificar de que toda a família foi embora. Ele não tinha, como todos nós, o preparo militar para se portar diante de um tiroteio. Resultado: ele morreu, mas nenhum assaltante nem policial morreu.

Essa guerra não desestabiliza o sistema, ela é produzida pelo sistema, e faz parte de sua estabilidade. O medo, impotência e resignação decorrem precisamente da falta de esperança que o sistema nos impõe ao demonstrar que ele se mantém muito bem diante da barbárie; para ser mais exato, a barbárie do sistema torna-se o sistema da barbárie.

O efeito dessa guerra não está no medo ao sair da rua. Aquilo que foi a condição de possibilidade para que essa barbárie ocorra acresce e se multiplica em todas as extensões sociais. O individualismo irracional e estúpido dos mais poderosos, como Adorno bem observou, é na verdade expressão do contexto geral de cegueira da multidão; quer dizer, é o “egoísmo” de um eu vazio. Na ânsia de salvar a própria pele, o sujeito se torna vítima de seu desejo de se destacar para, na medida do possível, se livrar do pior, e lucrar com todas as vantagens. Isso é efeito da cegueira generalizada (Verblendungszusammenhang), que leva a um contexto geral de culpa generalizada (Schuldzusammenhang). Devido a essa atitude, aumentam os constrangimentos sociais (minha fonte dessa categoria é Jean Baudrillard, que fez dela um uso semiológico nos seus primeiros livros; ela está sendo recente pensada pela sociologia recente; de outro lado, Bourdieu utiliza a idéia de “poderes simbólicos”, para além dos valores econômicos e políticos), um sujeito ostenta ao outro suas qualidades, distintivos, conquistas e reconhecimentos de seu valor social.

Essa performance da exibição de status pessoal possui raízes antropológicas. O potlatch analisado por Mauss e, de forma mais geral, a dádiva, seriam um aspecto da questão. A dádiva, contituindo um dos elementos que rege organizações sociais, é um ato simultaneamente espontâneo e obrigatório de circulação de bens, mas sem a noção de mercadoria, lucro, etc. Mauss insiste que ela não é neminteresseira nem altruísta, nemindividualista nem desinteressada, nem só egoísta nem solidária, unindo tais oposições estanques do pensamento liberal.

Aqueles que estão numa situação um pouco mais privilegiada se tornam uma espécie de semideuses – competindo entre pares - e humilham os que se vêem na miséria econômica, cultural, política e até moral.

O assassinato de Maria Cláudia em Brasília, uma menina rica e linda que foi estuprada, violentada e assassinada pelo caseiro e sua namorada, a empregada, é um exemplo clássico do que eu estou refletindo. Essa estudante de faculdade estava na melhor das condições estatutárias possíveis que uma mulher pode ter hoje e foi justamente por isso que foi vítima de um crime hediondo. Visitando a comunidade de solidariedade a ela fiquei muito tocado com a solidariedade e união de forças em torno da paz na prática cotidiana de comunicação pela Internet. Há vários sites para cada vítima do passado e do presente, o que singulariza cada caso e dá a ele um valor coletivo oposto à indiferenciação estatística, assim como o aparecimento sensacional e esquecimento posterior na mídia (por mais esforços que a mídia tem feito de reforçar as lembranças; o problema está, para começar na natureza do medium).

Apesar das belas qualidades que aparecem no orkut e na iniciativa individual e coletiva, lá

um tópico intitulado: “Se você encontrasse com esse caseiro, o que faria?” Noventa e nove por cento das frases são como essas:

“O que eu faria????Ia simplesmente castrar esse infeliz. Depois eu cegaria e para finalizar, faria com que ele tomasse um banho de soda caustica!!!!!!”

Cortava dedo por dedo , cortava as pernas, dps cortaria o seu pescoço com uma faca cega.
o MINIMO q
eu faria”

“nao mataria ele!

a morte representa o fim, torturaria ele com uma mescla de tortura fisico e psicologica!

Tiraria toda a esperança de sobreviver dele!

FARIA ELE DESEJAR A PROPRIA MORTE!!!!!

Mas nunca matalo!!!!

Um lixo desse merece um destino pior q uma morte brutal!”

http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=923405&tid=5098991&na=3&nst=11&nid=923405-5098991-2458540931373182296

Não considero esse tipo de exibição coletiva do imaginário ruim, acho extremamente saudável. A Internet nos mostra, como nenhum outro meio de comunicação anterior, o que as pessoas estão realmente pensando. Elas criam para si mesmas formas de comunicarem aquilo que muitas vezes seria de difícil expressão. Não é por isso que não vou me preocupar com o que é dito e quais são as suas implicações.

As pessoas simplesmente não pensam com seriedade o que levou os criminosos a cometer a barbárie. Não foi inveja da namorada e a libido do caseiro, como os registros criminais escrevem e a mídia e orkuteiros repetem. Foi a total falta de formação (Bildung) das pessoas para lidarem com sua inveja e sua vontade de poder, tanto do lado dos desfavorecidos, como dos favorecidos. A falta de educação, no sentido mais extenso, amplo e pregnante dessa palavra, ausenta-se de ambos os lados. O caseiro é uma vítima brutal do seu desfavorecimento e dos contrangimentos sociais que vive a todo minuto e todo dia, e não possui a mínima formação para lidar com sua terrível realidade. A vítima e a família, por outro lado, não se dá conta de que seu privilégio é vazio e perigoso para elas próprias se não houver um trabalho de formação para lidar com o contexto geral de cegueira e culpa. Portanto, a vítima e família estão no caso da semi-formação (Halbbildung) o caseiro está no caso de a-formação (categoria que eu e meu amigo André Luiz Pinto pensamos a partir da categoria de Adorno, que abrange tanto os desfavorecidos quanto os emergentes sem a mínima formação cultural). Não quero dizer que Maria Cláudia tenha culpa de ter sido vítima, longe disso, mas quero dizer que todos os indivíduos hoje não sabem lidar com suas qualidades e privilégios, grandes ou pequenos, para que elas não humilhem o semelhante e não o levem a, imaginaria ou literalmente, querer matar o seu soberano.

Geralmente o pensamento político o problema na falta de privilégio e status, mas eu estou agora procurando entender o problema de quem possui tais signos de valor social e geralmente compete com um parceiro social ligado ao mesmo jogo performático e ascético de exibição. Hoje me parece evidente que o ódio coletivo e individual aparece por causa da incapacidade da sociedade moderna, e especialmente brasileira, de sustentar privilégios recebidos ou conquistados diante de uma situação de desigualdade extrema.


Quando digo isso proponho-me a pensar junto, porque me dei conta de que eu mesmo errei muito, e continuo errando, em não saber lidar com minhas qualidades diante dos outros, nem saber lidar com as qualidades dos outros que eu não tenho. Essa é uma ascese difícil, pois, para nossa sobreviência, precisamos sempre fazer o gesto político da propaganda de nós mesmos (é o que o discurso neoliberal codifica como "empresariar-se a si mesmo"; seu nome, sua vida, sua fama é uma empresa ambulante e deve ser gerida por meio da analogia com as grandes corporações), contar nossos pequenos sucessos profissionais, pessoais, etc. Não proponho uma ascese da renúncia às qualidades, nem de altruísmo. As duas soluções são, a meu ver, absolutamente falsas e hipócritas hoje. Talvez valha para um ou outro asceta e santo, que muito admiro, mas precisamos saber encontrar saídas não num suposto não-individualismo, antes, num individualismo esclarecido, para que possamos talvez um dia fazer reluzir uma pequena luz da superação do individualismo no mundo administrado.

E o que dizer dessas declarações do orkut? Apesar de ser saudável expressar o ódio que aparece dos criminosos, esquecemos que tais criminosos são vítimas do ódio cotidiano produzido pelo contexto geral de culpa, e de vítimas passam facilmente a carrascos. Há uma declaração que considero primorosamente exemplar:

Um pior que o outro... Vocês estão se rebaixando ao nivel dele. O melhor seria exclui-lo da sociedade, assim, nao tirando a vida dele, e ao mesmo tempo, ele nao teria vida.”

O sujeito que postou essa frase não tem idéia da verdade do que escreveu. O que ele gostaria que se fizesse, colocando-se acima do ódio de seus colegas, é precisamente o que o sistema sempre fez com o caseiro. O caseiro não tinha vida, não estava “integrado” na sociedade, não teve condições de ter nem formação, nem semi-formação.

No plano mais intrínseco de nossos afetos mais terríveis, estamos desejando o que está acontencendo. Somos vítimas de nosso ódio generalizado. Alguns amigos meus possuem o discurso da paz e do amor, de natureza esotérica e religiosa. Amo paz e amor, mas não me venham com falta de “coração” nessas horas: o que está havendo é falta de reflexão e ação mediada pela teoria, pela discussão mais paciente e urgente, para dar ao amor condições de ele se realizar como tal. Se não houver reflexão racional, e para além da razão, se se quiser, mas a partir dela, não há a tão desejada mudança. O “coração” será mais uma vítima ... e um carrasco.

Na discussão sobre a morte de João Hélio, o que a mídia e a semiformação da sociedade coloca em primeiro plano é a penalidade para menores, e no orkut está havendo um movimento forte para a pena de morte. Não sou nem contra nem a favor da pena de morte ou da mudança de lei para menores, mas o absurdo nessa reação é não aparecer as causas reais: a falta de educação, a escola da barbárie nas prisões e, numa dimensão mais ampla, a cegueira em relação aos conflitos e constrangimentos sociais. Dessa dimensão mais ampla sem dúvidatodos somos culpados”, como escreve um dos maiores contribuintes para a semiformação no Brasil e no mundo hoje: Paulo Coelho.

http://g1.globo.com/Noticias/Colunas/0,,7410,00.html

Mensagem de 10/02/07 02:34

Cito o texto dele mas peço que não o leiam, por favor.

Lula diz que Brasil não é violento por causa da pobreza, os EUA possuem o mesmo tipo de delinqüentes como nós. Fico impressionado com a inteligência de nosso presidente. Ele está certo, devo concordar. Ele disse que devemos refletir sobre o que leva um ser humano a fazer isso. Também concordo plenamente. Mas pára por .

O problema da semiformação é “parar por ”. A teoria e o pensamento sério, mesmo em muitas de suas maiores contribuições, possuem muita dificuldade de encontrar alguma formulação não que conta do todo, mas que atinja algo do núcleo do todo na dialética entre esclarecimento e barbárie. Até hoje não encontrei nenhum pensador que tenha conquistado melhores resultados nesse sentido do que Theodor Adorno, mas tampouco me satisfaço com ele, preciso, junto com toda a comunidade de amigos, colegas, professores que eu conheço e não conheço, elaborar uma análise e crítica da atualidade.

O que devo acrescentar ao nosso presidente? Os EUA é um país bélico. Faz parte dos interesses de sua elite preparar delinqüentes para guerras. É que há a maior indústria cultural onde a semiformação impera. Por isso é um país contraditório.

No penúltimo capítulo de Vigiar e punir, de Michel Foucault, depois de toda uma análise penetrante e minuciosa sobre o regime disciplinar nas prisões, o pensador francês chega a conclusão, muito marxista, de que as prisões modernas, desde suas origens burguesas até hoje, não foram criadas para “curar” os presos de seu mal, mas sim para registrar, documentar, controlar, administrar, usufruir e capitalizar o poder e o serviço de violência que eles prestam para a sociedade.

Mas hoje as prisões da Europa e dos EUA estão muito melhores, pois sua burguesia não precisa tanto de seus próprios delinqüentes (EUA é um caso mais complexo), usa o de outros lugares, como do Brasil, como nossos treinadores de torturas que são mandados para o Iraque. Sinto dizer a todos que é do interesse internacional e nacional que tenhamos prisões lotadas formando delinqüentes hediondos e sofisticados. Não estou generalizando e dizendo que ele possuem esse interesse maquiavélico, nem que não haja conflitos políticos e forças emancipatórias que combatem esse interesse, mas não posso ignorar que há esse interesse. E a semiformação de grande parte de nossa classe média apóia esse sistema sem quer mudá-lo, nem tem a noção de que participa desse contexto geral de culpa, deseja que haja mais violência nas prisões para os criminosos, de modo que tais criminosos se tornem cada vez mais hediondos. Seu medo reage a favor do que motivou o medo. Ser mais duro com os criminosos, inclusive matá-los, só aumentará a violência. Maior rigor (que no fundo deseja vingança) para os presos vai na prática torná-los piores do que já são, e matá-los vai tornar seus familiares e amigos ainda não delinqüentes novos criminosos.

Luc Ferry diz que as pessoas não morrem hoje mais por nação ou por revolução, e estão privilegiando as relações afetivas. Eu acrescento que se matarem ou torturarem alguém, sua mãe ou sua mulher, seu melhor amigo, se não tiverem uma estrutura psicológica muito forte para suportar o acontecimento, tornar-se-ão também delinqüentes. Vários filmes (lembro de Kill Bill de Tarantino, Cidade de Deus, etc.) e livros estão mostrando essa multiplicação da violência devido à rede de ódio que se estende quando um indivíduo é violentado ou morto. Geralmente nossa classe média não pega nas armas, mas pretende mudar as leis. Em vez de pensarem o problema, pensam em tornar a própria lei um instrumento de seu medo e ódio.

O problema é que, pelo menos no Brasil, nossa produção capitalizada de violência e desigualdade está levando ao extremo uma verdade mundial, ao mesmo tempo muito antiga e muito moderna: o individualismo irracional, a razão instrumental, a capitalização da barbárie, não é favorável nem mesmo para nosso próprio individualismo. Se a Europa não é vítima da violência na mesma proporção que o Brasil, é porque a administração capitalista lá (aqui) não permite que ocorra o descontrole que estamos vivenciando no Brasil, por dois motivos:

1- o serviço de drogas e delinqüência, assim como os jogadores de futebol, passam a ser requisitados do Brasil e outros países,

2- na Europa, Canadá, EUA, etc. há mais formação, há menos individualismo irracional entre eles. Pergunte-se por que os países mais poderosos, desenvolvidos e democráticos são os que possuem as melhores bibliotecas, e a resposta será: melhores bibliotecas são a condição imprescindível para a formação.

Esse momento especialmente crítico meu e que não deseja de nenhum modo culpabilizar os países industriais nem a contribuição democrática e esclarecida que eles fornecem ao mundo
é
para dizer que a esperança que a modernidade carrega, na extensão da educação, aumento de informação, etc, no Brasil se choca mais radicalmente com o seu contrário: a administração e sofisticação moderna da barbárie, a regressão da razão que despreza sua dimensão ética e estética e mantém a tecnociência e o individualismo.

O Brasil não é violento por ser menos desenvolvido. É uma das maiores potências do mundo. Mas essa potência mantém a situação de neocolônia de sempre (multinacionais, submissão acadêmica, etc.), de um lado, e faz de seu crescimento singular a administração mais injusta e semiformada do mundo, de outro.

Lula e Caetano têm razão em dizer que a América Latina não pode ficar reclamando de ser menor, e colocar a culpa nos EUA e Europa. Somos todos culpados de nosso destino, por um lado, e vítimas inocentes do próprio contexto geral de culpa em que estamos inseridos desde que nascemos. Por outro, não devemos diminuir a exploração e capitalização passada e atual de nossa impotência e cegueira. Com isso não estaríamos diminuindo nossa admiração pelos EUA, por sua cultura e universidade, e toda a Europa.

A visão cultural dos índios, por exemplo, foi e está sendo aniquilada. De vez em quando aparece um Maurice Bazin (físico francês que fundou e dirigiu o Espaço Ciência Viva no Rio de Janeiro) para trabalhar com os índios e valorizar sua própria cultura, mas ele é uma exceção à regra. Como ele, há vários outros que renovam a minha esperança. De qualquer modo, a maior responsabilidade é nossa, mas não é nossa. Se fôssemos realmente independentes, se houvessem boas bibliotecas, empresas de avanço tecnológico nacionais, se não houvesse multinacionais em nosso território na quantidade e relevância que se constata, se as contas dos políticos não estivessem na Suíça, etc., aí a responsabilidade seria só nossa.

O legado europeu da colonização passada e da neocolonização atual fornece tanto potencial de emancipação quanto produz e reproduz a barbárie colonizadora de sempre. Nós somos atualmente vítimas de nossa cegueira porque reproduzimos a barbárie da colonização passada com toda independência que administramos, e mantemo-nos impotentes e resignados diante da dependência que ainda temos. Não quero ficar delegando nossa responsabilidade, mas acho que não devemos ignorar a neocolonização que se esconde por trás da independência. Devemos analisar até onde ela vai e qual a responsabilidade dela na situação atual.

A teoria não pode ser forçada a chegar a soluções, posição que Adorno sustentou em vida (apesar de ter apontado na filosofia, educação e na arte contemporânea os lugares principais de prática, prática educacional e cultural) e foi desdobrada pelo pós-estruturalismo. A teoria deveria lutar pela sua própria independência e valorização social, um de seus grandes desafios é combater a própria resistência à teoria. Contudo, também deve pensar em soluções, de acordo com a gradação de limites dos horizontes de prática possíveis e da extensão variável da natureza das ações, e denunciar os desvios do capitalismo para evitá-las.

Lembro que hoje na universidade a competição de vagas e espaço é maior do que qualquer tentativa de fortalecer a própria universidade de dentro para fora. Essa é mais uma dimensão dos efeitos do constrangimento social: a própria classe artística, intelectual e pesquisadora perde mais tempo com seus conflitos internos vãos, motivados por guerra estatutária, do que com seu potencial emancipatório.

Por isso, vou tentar pensar para frente e lançar concepções de prática nada novas.

O que está faltando, de um ponto de vista muito pessoal é:

1- investir pesado em educação, discutindo e visando o melhor que ela pode oferecer e alcançar para que haja o advento desejável de uma real formação;

2- isso implica não em melhores escolas, pagamento aos professores, mas também em bibliotecas de alto nível, para que os pesquisadores mais qualificados tenham melhores condições de trabalho e façam jus a seu título, o que atualmente, devo ser duro nesse ponto, não ocorre;

3- investir em saúde, saneamento básico, etc., oferecer serviços públicos que cumpram sua função de verdade e não de mentira;

4- fazer um reconhecimento midiático e nacional de que as prisões são elaboradas para a barbárie capitalista (o que a mídia nunca reconhece, mesmo quando mostra a realidade; é essa sua estratégia perversa: mostra tudo, mas elude a conclusão final) e finalmente dar aos presos condições de recuperação psicológica. Percamos menos tempo com discussões secundárias em lei, se devemos ser mais ou menos rigorosos com a população carcerária: deixe isso mais ao cargo de psicólogos especializados do que do ódio popular;

5- fazer um trabalho mais amplo de reflexão dos conflitos e constrangimentos sociais e, principalmente, dar mais voz à arte, teoria e filosofia, evitando a reprodução dos mesmo constrangimentos ao valorizá-las;

A cultura no Brasil está em geral bem: há uma série de revistas sobre arte e pensamento na Internet, e as pessoas tem sido cada vez mais engajadas, e há dinheiro. Grande parte dos brasileiros estão sedentos por cultura, o problema está em dar condições e administrar essa demanda humanamente, racionalmente. Mas, por causa dos outros problemas, precisamos sempre de muito mais. Valeria pensar em estratégias de conexão entre teoria e prática que não diminuísse a teoria, que não fizesse da culturalixo”, mero privilégio de setores sociais determinados, como Adorno a denominou.

Essas propostas são tão enormemente difíceis, demoradas, quanto urgentes, e eu não fui o primeiro nem serei o último em apontar a maioria delas. (Observo, no entanto que o último item é de minha autoria, vejo pouca discussão sobre ele, e me parece o mais difícil, extenso e importante. Meu último artigo sobre Mutantes, que será brevemente publicado no revista organizada por Chico Bosco, aborda um pouco desse assunto). Mas as repito de novo no contexto deste escrito para que elas sejam vistas, talvez, de outro modo.

A mídia, sem desconsiderar o melhor do que tantos jornalistas estão fazendo, é a grande agente da semicultura. Ela atomiza a informação e contribui, nesse isolamento da notícia, para a resignação geral. Depois de ver a barbárie midiatizada, virtualizada e empacotada pela mídia, o sujeito se sente completamente impotente e mais amedrontado. Reconheço o esforço da Globo, por exemplo, nos canais fechados, e às vezes abertos, em exibir debates com sociólogos e especialistas. Penso que a voz dessas pessoas deveria ser quadruplicada. A reflexão universitária de ponta nesses assuntos e em outros deveria ganhar um tratamento de fortalecimento midiático e estatutário para fazer os políticos, as autoridades e a sociedade a ouvirem e participarem da discussão.

Obrigado por terem lido esse texto, entrem em contato.