dialética negativa

Thursday, April 19, 2012

teoria da literatura II - pobreza da experiência: capitalismo e religião

 A pobreza da experiência tem como causa:
1- desenraizamento do cidadão metropolitano moderno em relação à tradição; a narração de experiências coletivas e a condensação dessas experiências em fórmulas verbais, da quais a poesia está incluída;

2- a ciência (histórico-positivista) desqualifica o saber transmitido oralmente e o testemunho, isto é, desvaloriza a experiência pessoal e coletiva em prol do fato

3- a informação midiática isola uma notícia das outras e não permite a concatenação, correlação e associação entre eles.

O desenraizamento moderno e sua consequente pobreza da experiência causa:

1- um indivíduo em semi-formação, que consome ofertas prontas de crenças pré-modernas;

2- retira a sua capacidade de discernimento, mistura ciência, religião e mercado;

3- expõe o sujeito ao enfrentamento do desamparo e ao mesmo tempo o captura em ideologias e ilusões.

Para não cair nesses enganos nem cair no niilismo:

1- não adianta relativizar o desemparo que o materialismo científico introduz;

2- o plano transcendental da linguagem e da ficção justifica o espaço incerto e suspenso do transcendente;

3- a religião contém sabedoria prática de milênios para enfrentar desde situações críticas até as dúvidas mais angustiantes;

4- somos novos no enfrentamento do niilismo (por meio da psicanálise, filosofia e literatura) e somos velhos no suporte psicológico da religião.

Falta abordar agora:
1- papel da crença moderna no progresso;

2- papel da mentalidade científica na literatura e nas artes modernas

3- Maneiras da literatura de enfrentar o niilismo e absorver a demanda da atualização da moda, da mídia e da ciência;

4- Nexo entre cientificização da arte e dialética entre arte e vida: como a arte pretende tornar-se arte de viver.

Como o capitalismo enquanto "fenômeno religioso" que "sobrevive de modo parasitário ao cristianismo" (Ramos, Pedro Hussak van Velthen. "O sagrado e o profano em Agamben" In: D'Angelo, Marta. Oliveira, Luiz sergio de. Walter Benjamin: arte e experiência. Niterói: UdUFF, 2009, p. 54-75, especialmente p. 67) se torna uma nova religião:
1- o capitalismo é uma religião puramente cultual, não há dogma, somente a permanência do culto

2- Ele promove a intensificação da culpa (palavra Schuld, em alemão, significa tanto culpa quanto dívida financeira)

3- é a religião da pura separação, não é possível separação.
 Leia a tradução deste trecho de Benjamin aqui:
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa/garrafa23/janderdemelo_capitalismocomo.pdf

Com base nessas considerações, eu desenvolverei a hipótese de que:

1- a culpa e a imposição de culto permanente imposta pelo capitalismo é um entrave à experiência poética

2- a imediatidade (Unmittelbarkeit) está quase totalmente colonizada pelo culto capitalista;

2- a experiência poética é feita de uma liberação de faculdades específicas: associação, rememoração, atenção, contemplação, todas elas retomam qualidades da experiência infantil;

3- Para sair do círculo demoníaco da pobreza de experiência própria das condições de vida no capitalismo (a ligação entre o capitalismo e o demoníaco é também de Adorno e Thomas Mann), é preciso exercitar-se em faculdades adormecidas, isto é, não é possível sem "estudo" (ensaio sobre Kafka de Benjamin). Ele fortalece a mediação e permite transformar o totalitarismo oculto do imediato.

Monday, April 09, 2012

Literatura Portuguesa III - fragmentos II

Fernando Pessoa: livro do desassossego


Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que
faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas
crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura
informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente,
por todos, por tudo.



Enterneço-me com uma
largueza de coisa infinita



70
Passam com todas as atitudes com que se define a consciência, e não têm
consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns
inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros
jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo
que não existe.



71
E é por isso que o meu estudo atento e constante
é essa mesma humanidade vulgar que repugno e de quem disto. Amo-a porque a
odeio. Gosto de vê-la porque detesto senti-la. A paisagem, tão admirável como
quadro, é em geral incómoda como leito.



Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos.


76.
Penso às vezes com um agrado (em bissecção) na possibilidade futura de uma
geografia da nossa consciência de nós próprios. A meu ver, o historiador futuro das
suas próprias sensações poderá talvez reduzir a uma ciência precisa a sua atitude
para com a sua consciência da sua própria alma. Por enquanto vamos em princípio
nesta arte difícil – arte ainda, química de sensações no seu estado alquímico por
ora. Esse cientista de depois de amanhã terá um escrúpulo especial pela sua própria
vida interior. Criará de si mesmo o instrumento de precisão para a reduzir a
analisada. Não vejo dificuldade essencial em construir um instrumento de precisão,
para uso auto-analítico, com aços e bronzes só do pensamento. Refiro-me a aços e
bronzes realmente aços e bronzes, mas do espírito. E talvez mesmo assim que ele
deva ser construído. [o resto também...]



Talvez se descubra que aquilo a que chamamos Deus, e que tão patentemente
está em outro plano que não a lógica e a realidade espacial e temporal, é um nosso
modo de existência, uma sensação de nós em outra dimensão do ser. Isto não me
parece impossível.



Os sonhadores actuais
são talvez os grandes precursores da ciência final do futuro.



Como se não tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa
de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos
sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para
o quintal por um movimento indolente do pé à passagem.



89.
A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma
actividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe estéril, e
o uso fixo de normas de pensamento filosófico e metafísico cuja importância se
sente ser nula.



O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos – a da encarnação disforme do não-ser.


Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado na cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só

a cela é tudo?

E este estado de falta de alma, que seria cômodo, porque certo, num deitado ou num recumbente, é singularmente incômodo, doloroso até, num homem que vai andando pela rua.


Os Deuses, se são justos em sua injustiça, nos conservem os sonhos ainda quando sejam impossíveis, e nos dêem bons sonhos, ainda que sejam baixos. Hoje, que não sou velho ainda, posso sonhar com ilhas do Sul e com Índias impossíveis; amanhã talvez me seja dado, pelos mesmos Deuses, o sonho de ser dono de uma tabacaria pequena, ou reformado numa casa dos arredores. Qualquer dos sonhos é o mesmo sonho, porque são todos sonhos. Mudem-me os deuses os sonhos, mas não o dom de sonhar.



Todos os pensamentos, que têm feito viver homens, todas as emoções, que os homens têm deixado de viver, passaram por minha mente, como um resumo escuro da história, nessa minha meditação andada à beira-mar. [...]


O melhor e o mais púrpura é abdicar. O império supremo é o do Imperador que abdica de toda a vida normal, dos outros homens, em quem o cuidado da supremacia não pesa como um fardo de jóias.


E é então que eu sinto com visões claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar.

Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser.



Benjamin sobre Proust
47-48
Proust,
essa velha criança, profundamente fatigado, deixou-se cair no
seio da natureza não para sugar seu leite, mas para sonhar,
embalado com as batidas do seu coração. Ê assim, em sua fra-
queza, que precisamos vê-lo, para compreender a maneira fe-
liz com que Jacques Rivière procurou interpretá-lo, a partir
dessa fraqueza: "Marcel Proust morreu por inexperiência, a
mesma que lhe permitiu escrever sua obra. Morreu por ser
estranho ao mundo, e por não ter sabido alterar as condições
48
de vida que para ele se tinham tornado destruidoras. Morreu
porque não sabia como se acende um fogo, como se abre uma
janela". Ε morreu, naturalmente, de sua asma nervosa.




Sunday, April 08, 2012

Teoria da Literatura II - framentos 2

Walter Benjamin sobre Proust


Unold encontrou a ponte
para o sonho. Toda interpretação sintética de Proust deve
partir necessariamente do sonho. Portas imperceptíveis a ele
conduzem. Ê nele que se enraíza o esforço frenético de Proust,
seu culto apaixonado da semelhança.



A seme-
lhança entre dois seres, a que estamos habituados e com que
nos confrontamos em estado de vigília, é apenas um reflexo
impreciso da semelhança mais profunda que reina no mundo
dos sonhos, em que os acontecimentos não são nunca idênti-
cos, mas semelhantes, impenetravelmente semelhantes entre
si.



45
Como
Proust, também nós somos hóspedes que, sob uma insígnia
vacilante, cruzamos uma soleira além da qual a eternidade e a
embriaguez estão à nossa espera. Com razão, Fernandez dis-
tinguiu, em Proust, um thème de l'éternité de um thème du
temps. Mas essa eternidade não é de modo algum platônica
ou utópica: ela pertence ao registro da embriaguez.

A eternidade
que Proust nos faz vislumbrar não é a do tempo infinito, e sim
a do tempo entrecruzado.


Ê o mundo em estado
de semelhança, e nela reinam as "correspondências", capta-
das inicialmente pelos românticos, e do modo mais íntimo por
Baudelaire, mas que Proust foi o único a incorporar em sua
existência vivida. É a obra da mémoire involontaire, da força
rejuvenescedora capaz de enfrentar o implacável envelheci-
mento.
46
No instante, a paisagem se agita
como um vento. "Ah! Que le monde est grand à la clarté des
lampes! Aux yeux du souvenir que le monde est petit!" Proust
conseguiu essa coisa gigantesca: deixar no instante o mundo
inteiro envelhecer, em torno de uma vida humana inteira.



A la recherche du temps perdu é a tentativa interminável de
galvanizar toda uma vida humana com o máximo de consciên-
cia.



Dificilmente terá havido na literatura ocidental uma ten-
tativa mais radical de auto-absorção, desde os exercícios espi-
rituais de Santo Inácio de Loyola.



O que parece tão
irritante e caprichoso em muitas anedotas é que nelas a inten-
sidade única da conversa se combina com um distanciamento
sem precedentes com relação ao interlocutor.



Proust,
essa velha criança, profundamente fatigado, deixou-se cair no
seio da natureza não para sugar seu leite, mas para sonhar,
embalado com as batidas do seu coração.



Benjamin sobre Kafka
161
Porém o esquecimento diz sempre res-
peito ao melhor, porque diz respeito à possibilidade da reden-
ção. "A idéia de querer ajudar-me", diz, ironicamente, o espí-
rito sempre inquieto do caçador Gracchus, "é uma doença
que deve ser curada na cama." Os estudantes não dormem,
por causa dos seus estudos, e talvez a maior virtude dos estu-
dos é mantê-los acordados. O artista da fome jejua, o guar-
dião da porta silencia e os estudantes velam: assim, ocultas,
operam em Kafka as grandes regras da ascese.



Benjamin sobre o Narrador
203
narrador
Em em outras palavras: quase nada do que acontece esta a servico de
narrativa, e quase tudo está a serviço da informação.

205
Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele
escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente 

o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está
^guardado o dom narrativo. Ε assim essa rede se desfaz hoje
por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios* em
torno das mais antigas formas de trabalho manual.



Valéry conclui suas reflexões com as seguintes palavras:
"dir-se-ia que o enfraquecimento nos espíritos da idéia de
eternidade coincide com uma aversão cada vez maior ao tra-
balho prolongado". A ideia de eternidade sempre teve na
morte sua fonte mais rica. Se essa idéia está se atrofiando,
Jemos que_concluir que o rosto da morte deve ter assumido
outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu a
comunicabilidade da experiência à medida que a arte de
narrar se extinguia.



215
Comum a todos os grandes narradores é a
facilidade com que se movem para cima e para baixo nos
degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada
que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens — é
a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o
mais profundo choque da experiência individual, a morte, não
representa nem um escândalo nem um impedimento.



215
O conto
de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua
ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é 

enfrentar as forgas do mundo mítica com astúcia e arrogância.


216
a especulação de Orígenes, re-
jeitada pela Igreja de Roma, sobre a apocatastasis, a admis-
são de todas as almas ao Paraíso, desempenha um papel signi-
ficativo. Leskov foi muito influenciado por Orígenes
No
espírito das crenças populares russas, interpretou a ressurrei-
ção menos como uma transfiguração que como um desencan-
tamento, num sentido semelhante ao do conto de fada.



Quanto mais baixo Leskov desce na hierarquia das cria-
turas, mais sua concepção das coisas se aproxima do misticismo. Aliás, como veremos, há indícios de que essa caracte-
rística é própria da natureza do narrador.



Para esclarecer o significado dessa importante narrativa,
não há melhor comentário que o trecho seguinite de Valéry,
escrito num contexto completamente diferente. " A observação
do artista pode atingir uma profundidade quase mística. Os
_objetos iluminados perdem os seus nomes: sombras e clari-
dades formam sistemas e problemas particulares que não de-
pendem de nenhuma ciência, que não aludem a nenhuma
prática, mas que recebem toda sua existência e todo o seu
valor de certas afinidades singulares entre a alma, o olho e a
mão de uma pessoa nascida .para surpreender tais afinidades
em si mesmo, e para as produzir"