dialética negativa

Sunday, May 31, 2009

Memória de um anoitecer

A psicanálise parece dar mais importância ao que não lembramos do que o que lembramos. Mas ela também procura estar atenta às repetições, às invariâncias de um discurso. Há algumas lembranças que são marcantes, únicas, e se caracterizam-se por insistir em retornar, em meio a tantos outros acontecimentos de que nos esquecemos definitivamente. A insistência é em si mesma um mistério, contém um sentido (de algo recalcado, ou, como prefiro pensar, de algo interminável) em suspenso.
Estava anoitecendo, eu e meu pai estávamos saindo de um concerto do Duo Barbieri-Schneiter. Eu estava resfriado. Sempre tive medo de resfriados, pois fico muito enfraquecido e nada faço enquanto não me recuperar. Mas naquele dia eu desejava muito ir ver o duo de violões que admirava e fiz o sacrifício.
Lembro da sensação onírica, luzes da cidade reverberavam nas sombras, os sons do trânsito de embaralhavam enquanto meu pai dirigia o carro. Apesar das sensações desconfortáveis da gripe, havia o conforto de estar retornando para casa. Finalmente eu poderia me dedicar integralmente ao descanso para finalmente, depois, voltar a estudar, como sempre fiz. Uma finalidade é contrária a outra mas uma serve a outra. Uma é a finalidade da outra: descansar era a finalidade com fim, estudar, a sem fim. Parece uma inversão, mas não é. De qualquer forma, hoje aquele descanso-para-o-estudo e aquele estudo descansaram definitivamente. São fantasmas de um desejo antigo.
Quando olhava a cidade, perguntava-me algo como os versos de Murilo Mendes: "Quem são esses fantasmas que se movem nas ruas ... Procuro a amiga tão bela e necessária/ se não está comigo, em mim, é porque não existe" (p. 300, Poesia completa e prosa). Faltava a namorada dos sonhos, mas o pai estava lá, de alguma forma, e as pessoas eram como um cinema, fantasmas de um presente que me abandonaria. Os desconhecidos do passado se tornam inexistências familiares. A mulher tão esperada, outrora sumida, presentifica-se "em mim", e o pai que dirigia o carro agora dirige nuvens de um céu ignorado.
O que sempre resta é a sensasão de existir, com gripe, dor ou saudade. Não posso acreditar que não existo, mas tantos cotidianos, tantos estados de tempo que passei deixaram de existir. É tão inacredítável que haja mudança na sensação de existir que dá a impressão de que "também eu próprio não existo". Só isso, a mudança das fases da vida, da forma do cotidiano - homeopática, minimalista - parece dar a impressão de que algo nos abandonou e algo diferente nos acompanhará daqui para frente.
Gostaria de voar pelos estados de tempo que passei, "voar pelos ares" que um dia respirei e sentir o estranho familiar de uma identidade perdida.
Sou o que eu um dia gostaria que fosse. Mas como gostaria de reencontrar aquele que um dia quis que eu existisse. Essa impossibilidade é bela e provocante.

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No fundo, é isso que os velhos gostariam de encontrar nos mais jovens. Mas os jovens são seres completamente diferentes, num mundo completamente diferente.
Sou jovem em ser mais velho: é essa a situação de um homem na casa dos 30. Sou um recém-velho. Como professor universitário, verei muitos jovens mais ou menos da mesma idade passarem por mim de semestre a semestre. É curioso como os professores não pensam sobre isso. É tão estranho o sistema nos colocar na situação de conviver o resto de nossas vidas com alunos da mesma faixa de idade, enquanto nós vamos aos poucos envelhecendo. É como se o aluno não ennvelhecesse, como se os mesmos jovens fossem substituindo seus corpos e só o professor continuasse com o mesmo porém acrescentando as rugas (penso no ponto de vista da sala de aula, que é o mais neutro possível).
Ainda falta muito para eu me acostumar a essa situação que, se eu não morrer, acompanhar-me-á durante 30 anos. Serei testemunha do mesmo destino de meus professores. Até que ponto serei melhor, pior, diferente, igual ao que presenciei como aluno-espectador inquieto?
"Vigiarei- olho fértil - a formação das árvores e a migração das estrelas".
"Eu começarei então para mim mesmo".

Saturday, May 30, 2009

Detetive da poesia: o incendiário

Um teórico crítico como eu é um decifrador de poemas, como se cada um deles fosse uma pista do grande crime do mundo. Logo, sou um detetive da poesia, enquanto o poeta é o criminoso. Contudo, não me interessa muito o criminoso e sim o crime: a poesia, que é também a resposta de crime, a promessa de que o crime do mundo não é perfeito, de que o poema pode ser mais que perfeito que o crime do mundo e torná-lo imperfeito. O poema que alcança tal sucesso deve ser mais criminoso que o mundo justamente para que dê uma esperança negativa de que o crime do mundo seja vencido e termine. Em um dos poemas de Poesia em pânico chamado "Resgate", Murilo Mendes escreve:

Vós que pensais atacar as igrejas
Vinde a mim, incendiai-me.

A questão é: ele está se referindo a mim, o investigador do poema, do "caso"? Penso que sim. Se o poeta é um subversor da linguagem e da burguesia, eu sou um subversor da "casa do ser" que o poeta guardou em sua nova linguagem. Estou aqui para invadir sua casa, eu lírico. Se você acha que sua casa é a igreja, se você identifica seu próprio corpo com esta casa, "eu sou uma igreja em ruinas que vai submergir", então prepare-se, porque eu vou te sacrificar, "Apontai para meu corpo, altar do sacrifício", vou realizar o seu desejo, "Queimai-me".
Não vou resgatar a vítima, essa será aniquilada, vou resgatar o próprio crime, o crime da poesia contra o crime do mundo, contra o mundo, mas contra a igreja do mundo também, o lugar que deveria ser o de proteção e regeneração do espírito, lugar de separação do mundo no mundo, sendo, portanto, mais uma vez, duplamente, reflexivamente,
o crime do mundo.
Mas quando tenho o resgate nas mãos, estou ainda mais distante do mundo do que as cinzas do eu lírico. Estou imerso no fogo da poesia, escondido do mundo no mundo. Esse é o lugar do teórico crítico:
o do detetive que matou o criminoso, tornando-se mais criminoso que o criminoso: um traidor da justiça e da injustiça, do mundo e do espírito. Em sua dupla, tripla personalidade, esconde-se dentro da poesia. Não é seu criador, mas seu verdadeiro habitante: estrangeiro no crime do mundo, trai todo mundo sempre; em casa nos poemas, pode incendiar quem ele quiser.
Inclusive o hipócrita do leitor.

Wednesday, May 13, 2009

Morte de Deus, Édipo e a burguesia

No fragmento de 1872 de Nietzsche intitulado "Édipo", que Agamben analisa na p. 168 da edição francesa de A linguagem e a morte, Nietzsche se intitula o último homem, o último filósofo, com a mais solitária das solidões. O homem que "matou" Deus foi o homem burguês, que é o "último homem" de Assim falava Zaratustra, mas aqui Nietzsche parece se identificar com ele, sendo, penso eu, o último dos burgueses. No aforisma da morte de Deus, ele de fato fala com os homens da praça com o pronome "nós", nós matamos Deus, mas de todos nós, só um louco que se dá conta da dimensão do ato.


O mais interessante é identificar Édipo com o homem burguês (de fato, ele é um rei), com o homem que matou Deus, seu pai, e desposou a mãe, que poderíamos associar à natureza. Em vez de identificar o homem burguês com Ulisses, como é o caso de Adorno e Horkheimer, sendo o buruguês um homem vitorioso e astuto, que retorna à casa, estamos aqui o burguês como aquele que abusa da própria mãe com a exploração da natureza, abusa do "povo" com a exploração do trabalho alienado, escravizando o trabalhador ao pagar o tempo de trabalho, etc. Com isso, ele é banido de seu reino e funda uma segunda natureza na errância de seu individualismo, uma natureza cega. Assim, o fracasso de Édipo é o complemento da vitória de Ulisses e o perdão do Fausto de Goethe.

Se hoje o sujeito pós-moderno precisa administrar sua vida como uma empresa, através de seu computador e conexão Internet, parece que a segunda natureza se tornou uma terceira no mundo virtual (cf. Lukács e Baudrillard), mais um estágio da cegueira. Somos tiranos de nós mesmos, administrando os dados de nossa vida. Nessa terceira natureza, o deus ou o pai já morto é ressuscitado no mundo virtual como um simulacro do super-homem. Só no mundo virtual o super-homem burguês pode nascer, mas será que ele, a partir da técnica, vai crescer e se tornar o que se é?
Mas o verdadeiro super-homem está na ligação entre a mística e a máquina, negatividade e potência - positividade e concretização.

"A negatividade da voz é o fundamento místico de nossa cultura" Agamben

Em A linguagem e a morte de Giorgio Agamben, edição francesa, p. 162, essa afirmação vem depois de uma capítulo sobre a relação entre voz e silêncio em Hermes Trismegisto e Valentino (Valentino é um dos mais importantes gnósticos cristãos). Apreender a negatividade da voz (que habita todas as figuras do indizível na onto-teologia metafísica) significa pensar além das oposições (ser e ente, mostrar e dizer, mundo e coisa), quer dizer, pensar o absoluto (p. 163).
Em todos os casos da história da filosofia, o pensamento do absoluto tem a estrutura de um processo, de um sair de si que deve atravessar uma negatividade e uma cisão para retornar ao seu próprio lugar.

Tal como no fragmento de Schlegel abaixo, o momento da cisão moderna quer retornar à origem. Mas na filosofia antiga o lugar da sensibilidade e multiplicidade do mundo, o lado imanente, passou a ser o da própria história. O sujeito moderno é posterior, mas como só existe sujeito moderno, é o sujeito mesmo, alienado da origem, que é posterior. O sujeito já aparece como desfalcado da origem, sedento do fundamento, e já inscrito no processo de afastamento do absoluto e retorno a ele. Se o absoluto já implica o abandono do lugar originário e a viagem de retorno (p. 164, ver explicação da etimologia de ab-soluto, ab: afastamento, solvo- ato de desatar que reconduz qualquer coisa a seu lugar próprio, ao seu em si), não há absoluto sem Er-fahrung, a experiência enquanto viagem, a vida enquanto habitação provisória do ser. Hegel pensa o absoluto como resultado nesse sentido de processo de "absolução".




Reconstituir a perda é sempre uma tentativa de recuperação. Aprender o passado histórico é uma tentativa de fazer o caminho de certo de retorno. Há uma primeira suposição de que, no passado, ninguém conseguiu fazer o caminho certo, mas todas as tentativas contém uma pista de como finalmente descobrir o caminho. É baseado nessa suposição que a crítica à metafísica tenta desqualificar toda a metafísica e ao mesmo tempo relê-la.

A segunda suposição, a mais razoável, é a de que todos os caminhos já trilhados contém uma pista para o caminho que percorreremos porque eles contém em si sua perfeição peculiar. Penso aqui no conceito de perfeição de Spinoza: tudo no mundo é perfeito, mas as coisas são umas mais perfeitas que as outras. Diria que a singuralidade de cada caminho contém sua perfeição, assim como a singulidade de cada texto literário contém seu enigma para a crítica decifrar. Falta fazer a perfeição alheia (que chegou ao seu resultado, ao seu absoluto) contribuir para nossa viagem de volta, voltadiante.
Neoplatonismo: processão e retorno.
Nesse caso, há uma mística da viagem, da peregrinação, no estudo do passado, escolhendo nele aquilo que contém mais perfeição e que se associa melhor com a criação de nossa perfeição, que já é a viagem para o futuro retorno. O caminho hermenêutico da mística, de releitura e desleitura vivificante do texto sagrado, não faz outra coisa.