dialética negativa

Thursday, April 15, 2010

William Wordsworth

A poesia é o transbordamento espontâneo de sentimentos intensos: tem a sua origem na emoção recordada num estado de tranquilidade.
William Wordsworth

I WANDERED LONELY AS A CLOUD

Como nuvem eu vogava,
passando montes e prados,
quando súbito avistava
narcisos mil e dourados,
junto ao lago, na floresta,
dançando na brisa lesta.

Contínuos como as estrelas
na Estrada de Santiago,
infindos se alongam pelas
curvas margens desse lago.
E as cabeças sacudiam
no dançar em que existiam.

As ondas também dançavam:
em menos viva folia.
Que poetas recusavam
tão alegre companhia?
Olhei, e olhei, sem pensar
estar vendo coisas sem par.

Que às vezes, quando me afundo
em vácua ou tensa vontade,
el's brilham no olhar profundo
que é bênção da soledade,
e o coração se me enflora,
e dança com el's agora.

A CEIFEIRA SOLITÁRIA

Só ela no campo vi:
solitária de altas serras,
ceifa e canta para si.
Não digas nada, que a aterras!
Sozinha ceifa no mundo
E canta melancolia.
Escuta: o vale profundo
Transborda-a de harmonia.

Nunca um rouxinol cantou
em sombras da Arábia ardente
ao que exausto repousou
mais grata canção dolente;
ou gorjeio tão extremado
se escutou na Primavera,
cortando o Oceano calado
entre ilhas de Além-Quimera.

Quem me dirá do que canta?
Será que o que ela deplora
é antigo, triste e distante,
como batalhas de outrora?
Ou coisas simples são
do quotidiano viver?
Essas dor's de coração,
que já foram e hão-de ser?

Seja o que for que cantara
é como infindo cantar,
que a vi cantando na seara,
no trabalho de ceifar.
Sem falar, quieto, eu escutava
e, quando o monte subia,
no coração transportava
o canto que não se ouvia


(William Wordsworth)

O CARVALHO DE GUERNICA

Carvalho de Guernica! Árvore mais
Sagrada que em Dodona a que escondia
Uma divina voz (a fé o cria)
Dando da aérea fronde altos sinais!

Como podes florir em tempos tais?
Que esp'rança o Sol te traz, ou que alegria?
São-te trazidas pela maresia,
Ou por leves orvalhos matinais?
Benvindo seja o golpe que em ti caia,
E em terra alongue a tua fronde imensa,
Se nunca mais, à sua sombra densa,

Venham legislador's sentar-se ovantes,
Senhor's e camponeses, como dantes,
Guardiães das liberdades da Biscaia.


(William Wordsworth)

TINTERN ABBEY

Cinco anos à passaram, cinco Verões
e cinco Invernos longos! E outra vez
ouço estas águas que dos montes rolam
com tão doce murmúrio. Tomo a ver
estas altas escarpas majestosas
que no isolado matagal imprimem
ideias de mais funda solidão.
E à paz do céu eu ligo esta paisagem.
O dia me voltou em que repouso
uma vez mais à sombra do sicômoro,
e vejo desenhados os cultivos,
e os tufos do pomar que ainda imaturo
nesta estação do ano é verde, e não
se distingue dos bosques, nem perturba
o verde da paisagem. Ainda outra vez
contemplo as sebes, indistintas já,
porque cresceram bravas; e as herdades
verdes até ao limiar das portas;
e entre o arvoredo os ascendentes fumos!
Alguns são tão incertos, como se
fossem de vagabundos pelos bosques
ou de caverna de eremita aonde
junto do fogo el' esteja.
Esta beleza,
na longa ausência, nunca foi pra mim
como paisagem na Visão de um cego:
mas, amiúde, em quartos solitários
ou nas cidades agitadas, eu,
em horas de amargura, lhes devi
no sangue e no meu peito sensações
que entram às vezes no mais puro de alma
num repousar tranquilo. E sentimentos
de prazer não-lembrado, quais, talvez,
poder não pouco é que hão-de ter naquela
parte melhor da vida do homem justo:
breves, sem nome, não-lembrados actos
de bondade ou de amor.. Nem menos, creio,
ainda lhes devo mais sublime dádiva,
um estado de alma em bem-aventurança
em que a pesada carga do mistério,
em que a opressão, que nos esmaga e gasta,
do não-inteligível deste mundo,
se toma leve: esse sereno estado
em que Os afectos nos conduzem suaves-
até que, o respirar em nosso corpo
e o movimento de correr o sangue
quase que suspendidos, dorme o corpo
e se transforma em palpitar de uma alma:
enquanto um olhar, aquietado pelo
fundo poder de alegres harmonias,
nos mostra a vida interior das coisas.
Se uma vã crença isto só for.. mas quanto -
em trevas ou por entre as várias formas
de um triste dia, quando o anseio inútil
e a febre deste mundo mais pesaram
no coração que bate, oh, quantas vezes
em espírito, voltei às tuas margens,
silvestre rio!, que vagueias por
bosques tão verdes - quanto a ti voltei!
E Ora, em relance de idear quase extinto,
num reconhecimento vago e frágil
e algo também de uma tristeza ambígua,
a paisagem do espírito renasce:
enquanto estou aqui, não só no senso
do presente prazer, mas na confiança
que neste instante o alimento e a vida
no futuro não faltam. O que ouso esperar
sem dúvida diverso do que eu era,
quando andei nestes montes qual cabrito
saltava nas encostas, Pelas margens
de fundos rios e torrentes frias,
por onde a Natureza me levasse:
mais como aquele que foge do que teme
que quem procura o que ama. A Natureza
(os mais rudes prazeres da juventude
e a alegria animal do movimento,
agora já perdidos) para mim
era tudo. Não posso descrever
o que por mim eu era. A catarata
de ecos me fascinava: e a escarpa abrupta,
as montanhas, e os bosques mais sombrios,
as suas cores e formas então eram
como um desejo: sentimento e amor
não precisando mais remoto encanto
que o pensamento empreste, ou outro interesse
mais que o do próprio olhar. Mas esse tempo
passado é já, com seu prazer que doía,
suas vertigens de êxtase. Não me cabe
chorar ou lamentar, pois outros gozos
vieram, para tal perda, quero crer,
compensação bastante. É que aprendi
a ver a Natureza, não qual via
com juvenil descuido; mas ouvindo
a triste música da humanidade,
nem áspera, nem dura, poderosa
para nos aquietar. Tenho sentido
uma presença a perturbar-me alegre
com mais altas ideias: um sublime
senso de algo mais fundamente infuso,
cuja morada é a luz dos sois poentes,
do oceano a curva, o ar que nos rodeia,
o céu azul, e o pensamento humano:
um movimento, um espírito, que impele
tudo o que pensa, tudo o que é pensado,
e rola em quanto existe. Sou, portanto,
o amante ainda de montanhas, prados,
e bosques, e de tudo quanto vemos
na verde terra, e também todo o mundo
que ver e ouvir em parte criam e é
o que apercebem: e de aceitar feliz,
na Natureza e na sensual linguagem,
uma âncora do puro pensamento,
guia do que o meu peito sente,
e a alma do meu inteiro ser moral.

Thursday, April 08, 2010

Sobre Valdo Motta: questão da formação literária

Caros Alunos,
trabalharemos com o artigo da professora da USP IUMNA MARIA SIMON,"REVELAÇÃO E DESENCANTO:
A POESIA DE VALDO MOTTA, Novos Estudos Cebrap, n. 70 novembro 2004.

Baixem aqui:
http://www.cebrap.org.br/imagens/Arquivos/revelacao_e_desencanto.pdf
E poemas de Waldo Motta. baixem aqui:
http://www.rosanycosta.com.br/arquivos/category/1-e-books.html?download=245%3Awaldo-motta&start=180

Cito os trechos mais importantes de um e outro texto.

p.211
A formação literária não-convencional, com toda a precariedade que
pressupõe, pode vir a ser uma força, um "gesto ativo de criação", na
expressão de Sérgio Buarque de Holanda, a nos mostrar que se um
poeta tem algo a dizer ele é capaz de dialogar com todas as correntes
contemporâneas e superar as limitações de cada uma delas.

O artigo é um estudo sobre o livro Bundo e outros poemas. Campinas, SP : Ed. da Unicamp, 1996. 

Se o colapso da modernização
também se dá no âmbito da arte, a questão que fica é o que podem fazer
com o legado da experiência moderna aqueles setores excluídos que não
usufruíram em quase nada as promessas da modernização e só
sofreram, às vezes tragicamente, suas conseqüências, sobretudo numa
sociedade tão espoliadora como a brasileira.

Citação do livro de Valdo Motta:
http://www.rosanycosta.com.br/arquivos/category/1-e-books.html?download=245%3Awaldo-motta&start=180

DEUS FURIOSO
Waldo Motta
Estendi mãos generosas
a quantos o permitiram
e disse: sou Deus.
Porém, quem acreditou?

Fui humilhado,
escarnecido: Deus viado?
Fui negado e combatido.
Em meu amor entrevado,
cerrei lábios e ouvidos.
Até o amor reprimido
virar ódio desatado.
Rasguem céus e infernos,
ó gemidos e brados
de amor ressentido.
Raios partam quantos
meu amor tenham negado.
Prorrompam tormentas
em corações petrificados.
Quero ser amado
quero ser amado
quero ser amado

De busca de autoconhecimento em Waw, escrito entre 1982 e 1991,
a poesia se tornará em Bundo, de 1995, veículo para a formulação de
uma ciência própria, uma espécie de sistema poético e simbólico que ele
inventa contra uma sociedade em que não tem lugar e que nem tem
meios de transformar.
Para isso mobiliza todos os recursos e saberes
que estão à mão, do mais corriqueiro, como o "bicharês" (assim ele
gosta de chamar a gíria gay), ao mais esotérico: Bíblia, misticismo,
orientalismos, tantrismo, cabala, mitologia clássica e afrobrasileira.
Valdo não abandona nada do que viu, experimentou e aprendeu ao
longo da vida; soma e multiplica (é numerólogo convicto) e tudo
incorpora à sua expressão, como que num instinto de preservação.

VÓRTICE
Waldo Motta
E como os deuses me agraciassem
com a peste que me lavra a palavra
4
e me escalavra veias, nervos, plexos;
e como por emblema desta fúria
que em mim grassa - nem graça nem desgraça,
eu só tenha este séquito de traças
zanzando pela casa e em meu crânio;
e como nesta altura da descida
aos círculos do inferno eu só me eleve;
e como nada reste além da réstia
do que em mim é alheio e me arrasta
em seus rastos de luz na vasta treva,
que me resta, que me resta, e se é sina,
senão me dar, rabinho entre as pernas,
e coração na boca, e o cu na mão,
e ganindo no êxtase da dor,
que me resta senão a imolação,
o gozo da escarificação
nos cacos do Espelho, na moenda
do amor me revolvendo, e assim volvendo
ao pó, ao ar, à luz, ao Ser Essente?

p.214
O primeiro
poema, "Religião", apresenta um procedimento de construção
recorrente no livro, em que a auro-ironia quebra o tom grave com a
expressão corriqueira, desestabilizando os termos edificantes do poder
conferido à poesia e ao poeta com a exposição da imagem frágil e
carente de um sujeito aguerrido, de voz empostada e altiva:

RELIGIÃO
Waldo Motta
A poesia é minha
sacrossanta escritura,
cruzada evangélica
que deflagro deste púlpito.

Só ela me salvará
da goela do abismo.
Já não digo como ponte
que me religue
a algum distante céu,
mas como pinguela mesmo,
elo entre alheios eus.

A gesticulação arrogante e pretensiosa da
primeira estrofe aos poucos se desmancha na segunda, onde a poesia,
além de meio sagrado de religação, se alça a única saída para a redenção
individual — é essa a religião do poeta e o sistema de salvação que
começa a ser esboçado em Waw e será armado como doutrina em Bundo.
A auto-irrisão corrói a imagem heróica do poeta e o que possa haver de
grave e sublime na gesticulação encenada "deste púlpito". Ironizado o
obstáculo exterior ("goela do abismo") e diminuída a missão redentora
da poesia ("ponte"), o poema termina em escárnio que critica o gesto
inicial, a mostrar que sua empostação é elemento de auto-engano e que
sua ligação com o divino se esgota ali mesmo no plano material. Ou
melhor, a relação com a espiritualidade é contaminada pelos meios
materiais de se chegar a ela: de "sacrossanta escritura" a poesia é
reduzida a "pinguela" entre "alheios eus". Ou esta pinguela liga nada a
ninguém e o próprio eu se multiplica alheio a si mesmo, ou é o elo que
junta solidariamente os eus de outrem, tanto os iguais a ele (outros
homossexuais e excluídos) como toda a humanidade. De qualquer
forma, a segunda alternativa, posto que rebaixe o tom e o teor da nobre
missão, compensa a irrealizada ligação eu-céu (Deus), tornando a
poesia uma espécie de religião do indivíduo em busca de si, aqui
mesmo no chão da "ordinária e infame realidade".

Detenho-me em "Religião" com o intuito de indicar que o desacerto
entre pretensão e fragilidade, entre a grandeza da missão e a precariedade de
meios, com equivalentes quebras na empostação, no jogo imagético e na
linguagem, impregna a substância da expressão dos poemas de Waw.

p.213
A serviço de dissonâncias
de grande rendimento estético, prosaico e poetizado aqui andam
juntos, assim como sarcasmo e eloqüência.

Posta lado a lado com a poesia marginal, essa é uma poesia formalista
que elabora uma espontaneidade estudada, cuja espessura mítica e
simbólica não se rende ao cotidiano banal.

Eduardo Guerreiro B. Losso: comparar com o sublime do horror em Bataille e também em Roberto Piva

Noutras modalidades poéticas em que predomina o discurso sentencioso,
de entoação pregacional ou oracular (mais presentes em
Bundo), a sobrecarga de conteúdos simbólicos exaspera a discrepância
entre o alto e o baixo, o sagrado e o humano, a Bíblia e o corpo, criando
relações ao mesmo tempo sarcásticas e jocosas que desagradam tanto o
leitor beato quanto o homofóbico. Símbolos sagrados se associam ao
erotismo anal, o "buraquinho" é o trono do reino de Deus, referências
bíblicas e mitológicas se misturam ao chulo, ao bicharês, o Santo
Espírito é invocado para a felação, e daí a outras afrontas.
Ainda que
estranhe o teor de agressividade das imagens e as transições perversas
do registro lingüístico, nem lhes perdoe a falta de compostura
"literária", o leitor reconhece a força da dicção poética, que é obscena, às
vezes sacrílega, sempre herética, mas não libertina.
p. 214
O lirismo em sua mescla estilística, além das qualidades de
imediatez atrás apontadas, é também elaborado em diálogo com poetas
modernos e antigos, cujas referências são expostas nas epígrafes, nas
imagens, nas formas de composição, na citação explícita sem alçapões.

Por exemplo, o tropo da vida como viagem ensandecida, emprestado de
Rimbaud, em particular de "Le bateau ivre", apesar de convencional e
corrente, se traveste da experiência imediata do presente para ilustrar a
aventura espiritual do sujeito rumo à descoberta e à explicação de sua
identidade sexual e social.
217
a
força da formulação está em exigir que os pobres e marginais partilhem
o legado da cultura universal. 
Parecem evidentes as vantagens dessa
posição para a criação poética, por ampliar seu alcance e sua relevância,
e também por pretender o acesso dos excluídos ao mundo do espírito,
sem especializações e com radicalidade verdadeira.

Eduardo Guerreiro B. Losso: tirar a força da máxima humildade é um mote corrente na mística cristã.
Essa contradição entre grandiosidade dos propósitos e precariedade dos meios toca na questão do enfrentamento do niilismo em conflito com a esperança redendora.
219
"
sede acabará achando a fonte/e hás de partilhar os teus prodígios./Tão
mais humilde seja o teu barco/ mais longe irás, e até contra a maré"
O pano de fundo é a "infame realidade" de
sempre, mas o tratamento literário é outro, já que a poesia é concebida
como "revelação", meio de criação de novas realidades e de autoexaltação.

"No 
fervor das paixões retemperei o espírito e, satisfeitas minhas ânsias,
hoje descanso no Eterno, em núpcias comigo./ Descobri em meu corpo
a réplica do universo, o umbigo do ubíquo. No âmago do abismo
encontrei o bem e o mal em comunhão. E nunca mais fiz perguntas./
Serpentes me coroam".

232
Penso que o sistema de salvação funciona como um planejamento
estético que de algum modo corresponde ao desejo de emancipação do
poeta, cuja meta é eliminar a distância entre arte e vida ("Não quero
apenas escrever, mas também ser o que escrevo", diz Valdo no seu
prefácio a Bundo e outros poemas) e socializar a poesia, torná-la meio
prático de conhecimento e de criação de novas realidades.
233
Se essa dicção exige um teor de persuasão, uma
suspensão da descrença e um impulso de expressão quase arcaicos, ela
não é pluralista como o é boa parte da produção poética atual, em que
os procedimentos fragmentários e paratáticos da neovanguarda convivem
com um lirismo e um expressionismo débeis.